Sinais de Fogo
As
medidas cautelares têm, no contencioso administrativo, especificidades próprias
em relação às demais conhecidas no Processo Civil. Reparamos nisso, logo na
Constituição, uma vez que esta vem estipular uma garantia aos administrados de
uma tutela jurisdicional dos seus direitos e interesses legalmente protegidos,
através de diferentes meios, nos quais inclui precisamente a adopção destas
nossas medidas cautelares. O que dissemos vem plasmado no número 4 do artigo
268º da Lei Fundamental, que surgiu aquando da revisão constitucional de 1997.
As
providências cautelares são um meio útil e, por vezes, francamente necessário
de reacção da parte que intentou um processo nos tribunais administrativos, de
modo a poder assegurar que o processo principal em que se insere possa vir a
chegar a uma sentença útil. À partida um qualquer processo judicial tem uma
dilatação temporal mínima causada pelas formalidades do processo e pelo
trabalho humano envolvido, pelo que nesse lapso de tempo, a proposição da providência
cautelar pode surgir como fundamental para assegurar uma justiça efectiva; e
esta ideia surge reforçada perante as enormes dificuldades que os tribunais
nacionais apresentam, em termos de morosidade na conclusão dos processos.
Infelizmente, esta boa intenção legislativa acabou por ter um efeito perverso,
qual círculo vicioso, na medida em que conseguiu inundar os Tribunais
Administrativos de providencias cautelares, agravando a morosidade judiciária.
Não
obstante as dificuldades que providencias cautelares possam apresentar na vida
prática, o seu mérito e necessidade sobrepõem-se-lhes. Assim, no Código de
Processo nos Tribunais Administrativos, esta matéria surge regulada no Título
V, sendo-lhe dedicada os artigos 112º a 139º. Dada a vastidão temática, e tentando
dar um conteúdo utilmente sintético a esta breve reflecção, o seu mote vai ser,
em particular, uma tentativa de conciliar as diferentes funções antecipatórias
e conservatórias das providências cautelares, com os critérios de decisão da
adopção das mesmas, tal como resultam do artigo 120º CPTA.
Defende-se[1]
que esta contraposição deve ser enquadrada desde um ponto de vista funcional e
correlacionado com os diferentes casos a tutelar, entre situações jurídica
finais, estáticas ou opositivas e situações jurídicas
instrumentais, dinâmicas ou pretensivas. Entendem-se, grosso modo,
estas como as situações em que a satisfação do interesse em causa necessita
precisamente de uma prestação de outrem; e aquelas como as situações em que se
não se pretende mais do que uma abstenção de alguém, de modo a não por causa o
interesse do seu titular. Ora às situações jurídica finais, estáticas ou
opositivas corresponde o meio de tutela adequado as providências
conservatórias. Já perante situações jurídicas instrumentais, dinâmicas
ou pretensivas seriam adoptadas providências antecipatórias[2].
Clarificando, podemos dizer que as providências cautelares conservatórias,
visam manter, provisoriamente, um determinado estado de coisas até à decisão
final tomada no processo principal, de modo acautelar determinados interesses
presentes naquele momento – v.g. a suspensão da eficácia de um acto
administrativo-. Porém, não quer isto dizer que a adopção de uma medica
cautelar conservatória não possa justificar que se pratiquem condutas activas
de modo a manter o stato quo ante. Por sua vez, as providências
antecipatórias visam precaver, provisoriamente, que não se constitua uma nova
situação jurídica diferente daquela que se pretende obter com a proposição do
processo principal.
Esta
distinção que acabamos de fazer tem relevância quanto à verificação dos
requisitos necessários à procedência das providências cautelares, na medida em
que a lei vem prever diferenças quanto a eles em relação ao tipo de providência
em causa. Falamos dos casos do artigo 120º/1 CPTA. A sua al. a) vem logo gerar
uma controvérsia aparentemente impossível, visto que uma primeira leitura nos
leva a crer que seria admissível a adopção desta medida cautelar com base
apenas no fumus boni iuris (a analisaremos infra), sem que
verificasse a existência do periculum in mora, i.e. o fundado receio que
o decorrer de determinadas circunstancias, levem a que a decisão que venha a
ser proferida pelo tribunal sobre a situação jurídica litigiosa já não tenha efeito
útil ou produza danos gravosos. Tal entendimento não procede: desde logo porque
se não há qualquer perigo para acautelar, não há também qualquer razão para a
própria providência! Assim não haveria qualquer interesse em agir neste domínio
e, de qualquer forma, figurava-se de difícil compaginação com o próprio artigo
112º/1.[3]
Esta alínea a) configura uma situação excepcional, na medida em caso de
preenchimento da sua previsão, ela aplicar-se-ia por si só sem sequer haver
necessidade de indagar aos restantes critérios fixados nas alíneas seguintes.
Mas, ao que parece[4],
a própria densidade normativa do preceito, de textura aberta, levou a uma
desconsideração por parte dos tribunais que não dão procedência às providências
cautelares por esta via.
O
busílis da questão incide sobre os requisitos de procedência das providências
cautelares descritos nas alíneas b) e c) do referido nº1 do artigo 120 CPTA.
Com efeito, elas estão dependentes da verificação de três requisitos, dois
comuns e um bifurcado consoante a providência cautelar seja antecipatória ou
conservatória. Vejamos de mais perto:
Os
dois requisitos comuns são, de uma perspectiva positiva, o periculum in
mora, como acima o vimos, e, negativamente, a ponderação de interesses: que
o artigo 120º nº 2 vem estipular: prevê-se assim a recusa de ambas as providências
se da ponderação dos interesses públicos e privados, a procedência das mesmas
der origem a danos superiores aos que resultariam da sua simples recusa.
A
problemática põe-se relativamente ao clássico fumus boni iuris[5]
ou a aparência de bom direito. Na medida em que se exige que
seja provável que a pretensão em causa no processo principal, venha a
ser julgada procedente: mas esta formulação só serve, segundo a letra da lei,
para as providências antecipatórias (Cfr. art. 120º/1, c))
Acontece
que, no que diz respeito às providências conservatórias, o enunciado normativo
é diferente exigindo apenas que “não seja manifesta a falta de fundamento da
pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de
circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito”. É como, vemos,
uma formulação francamente menos exigente do que a estabelecida para as providências
antecipatórias. De facto, este critério foi descrito por CARLA AMADO GOMES[6]
como um fumus non malus, o que ilustra brilhantemente o que queremos
dizer.
Posto
isto, cumpre perguntar qual a razão para esta diferenciação de regime (?). A
mesma autora[7]
vem dizer: “A razão da distinção quanto aos critérios de ponderação da
possibilidade de decretamento da providência reside na maior responsabilização
do julgador perante a emissão de uma providência antecipatória – que consumirá,
total ou parcialmente, a decisão final. Quanto mais a providência cautelar
tender a consumir os efeitos (fácticos) da decisão final, maior deve ser o
cuidado do juiz na ponderação, forçosamente sumária, da necessidade da sua
emissão”. Ao que acima se referiu, exposição de motivos do CPTA vem
chamar-lhe “critério gradualista” pelo que se compreende a ideia de
adequação entre os efeitos que podem surgir da adopção do meio cautelar e a probabilidade
da procedência da acção principal.
Miguel Herdade
(19780)
(19780)
[1] Pelo menos MARIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS
CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ªed.,
pág.745 e VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, pág. 808
[2] Também FERNANDA MAÇÃS, As formas de
tutela urgente previstas no CPTA, pág. 223, apud MARIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS
CADILHA, Comentário.. ob.cit.
[3] MARIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA,
Comentário.. ob.cit. Pág. 796
[4] Pelo que apuramos através de TIAGO ANTUNES,
no seu ensino oral.
[5] Strong prima facie case test, na nomenclatura
anglófona; para uma nota comparatística em relação também à judicial review,
Cfr. p. ex. J. MANNING, Judical review proceedings, p.42 e ss. 1995
[6] CARLA AMADO GOMES, O regresso de Ulisses:
um olhar sobre a reforma da justiça cautelar administrativa, CJA nº39, pág.
9, Maio/Junho 2003; depois de três anos À
espera de Ulisses, Separata da Revista do Ministério Público nº 84, 2000
[7] CARLA AMADO GOMES, O regresso..ob.cit
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