terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Sinais de fogo


Sinais de Fogo

 

            As medidas cautelares têm, no contencioso administrativo, especificidades próprias em relação às demais conhecidas no Processo Civil. Reparamos nisso, logo na Constituição, uma vez que esta vem estipular uma garantia aos administrados de uma tutela jurisdicional dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, através de diferentes meios, nos quais inclui precisamente a adopção destas nossas medidas cautelares. O que dissemos vem plasmado no número 4 do artigo 268º da Lei Fundamental, que surgiu aquando da revisão constitucional de 1997.

            As providências cautelares são um meio útil e, por vezes, francamente necessário de reacção da parte que intentou um processo nos tribunais administrativos, de modo a poder assegurar que o processo principal em que se insere possa vir a chegar a uma sentença útil. À partida um qualquer processo judicial tem uma dilatação temporal mínima causada pelas formalidades do processo e pelo trabalho humano envolvido, pelo que nesse lapso de tempo, a proposição da providência cautelar pode surgir como fundamental para assegurar uma justiça efectiva; e esta ideia surge reforçada perante as enormes dificuldades que os tribunais nacionais apresentam, em termos de morosidade na conclusão dos processos. Infelizmente, esta boa intenção legislativa acabou por ter um efeito perverso, qual círculo vicioso, na medida em que conseguiu inundar os Tribunais Administrativos de providencias cautelares, agravando a morosidade judiciária.

            Não obstante as dificuldades que providencias cautelares possam apresentar na vida prática, o seu mérito e necessidade sobrepõem-se-lhes. Assim, no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, esta matéria surge regulada no Título V, sendo-lhe dedicada os artigos 112º a 139º. Dada a vastidão temática, e tentando dar um conteúdo utilmente sintético a esta breve reflecção, o seu mote vai ser, em particular, uma tentativa de conciliar as diferentes funções antecipatórias e conservatórias das providências cautelares, com os critérios de decisão da adopção das mesmas, tal como resultam do artigo 120º CPTA.

            Defende-se[1] que esta contraposição deve ser enquadrada desde um ponto de vista funcional e correlacionado com os diferentes casos a tutelar, entre situações jurídica finais, estáticas ou opositivas e situações jurídicas instrumentais, dinâmicas ou pretensivas. Entendem-se, grosso modo, estas como as situações em que a satisfação do interesse em causa necessita precisamente de uma prestação de outrem; e aquelas como as situações em que se não se pretende mais do que uma abstenção de alguém, de modo a não por causa o interesse do seu titular. Ora às situações jurídica finais, estáticas ou opositivas corresponde o meio de tutela adequado as providências conservatórias. Já perante situações jurídicas instrumentais, dinâmicas ou pretensivas seriam adoptadas providências antecipatórias[2]. Clarificando, podemos dizer que as providências cautelares conservatórias, visam manter, provisoriamente, um determinado estado de coisas até à decisão final tomada no processo principal, de modo acautelar determinados interesses presentes naquele momento – v.g. a suspensão da eficácia de um acto administrativo-. Porém, não quer isto dizer que a adopção de uma medica cautelar conservatória não possa justificar que se pratiquem condutas activas de modo a manter o stato quo ante. Por sua vez, as providências antecipatórias visam precaver, provisoriamente, que não se constitua uma nova situação jurídica diferente daquela que se pretende obter com a proposição do processo principal.

            Esta distinção que acabamos de fazer tem relevância quanto à verificação dos requisitos necessários à procedência das providências cautelares, na medida em que a lei vem prever diferenças quanto a eles em relação ao tipo de providência em causa. Falamos dos casos do artigo 120º/1 CPTA. A sua al. a) vem logo gerar uma controvérsia aparentemente impossível, visto que uma primeira leitura nos leva a crer que seria admissível a adopção desta medida cautelar com base apenas no fumus boni iuris (a analisaremos infra), sem que verificasse a existência do periculum in mora, i.e. o fundado receio que o decorrer de determinadas circunstancias, levem a que a decisão que venha a ser proferida pelo tribunal sobre a situação jurídica litigiosa já não tenha efeito útil ou produza danos gravosos. Tal entendimento não procede: desde logo porque se não há qualquer perigo para acautelar, não há também qualquer razão para a própria providência! Assim não haveria qualquer interesse em agir neste domínio e, de qualquer forma, figurava-se de difícil compaginação com o próprio artigo 112º/1.[3] Esta alínea a) configura uma situação excepcional, na medida em caso de preenchimento da sua previsão, ela aplicar-se-ia por si só sem sequer haver necessidade de indagar aos restantes critérios fixados nas alíneas seguintes. Mas, ao que parece[4], a própria densidade normativa do preceito, de textura aberta, levou a uma desconsideração por parte dos tribunais que não dão procedência às providências cautelares por esta via.

            O busílis da questão incide sobre os requisitos de procedência das providências cautelares descritos nas alíneas b) e c) do referido nº1 do artigo 120 CPTA. Com efeito, elas estão dependentes da verificação de três requisitos, dois comuns e um bifurcado consoante a providência cautelar seja antecipatória ou conservatória. Vejamos de mais perto:

            Os dois requisitos comuns são, de uma perspectiva positiva, o periculum in mora, como acima o vimos, e, negativamente, a ponderação de interesses: que o artigo 120º nº 2 vem estipular: prevê-se assim a recusa de ambas as providências se da ponderação dos interesses públicos e privados, a procedência das mesmas der origem a danos superiores aos que resultariam da sua simples recusa.

            A problemática põe-se relativamente ao clássico fumus boni iuris[5] ou a aparência de bom direito. Na medida em que se exige que seja provável que a pretensão em causa no processo principal, venha a ser julgada procedente: mas esta formulação só serve, segundo a letra da lei, para as providências antecipatórias (Cfr. art. 120º/1, c))

            Acontece que, no que diz respeito às providências conservatórias, o enunciado normativo é diferente exigindo apenas que “não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito”. É como, vemos, uma formulação francamente menos exigente do que a estabelecida para as providências antecipatórias. De facto, este critério foi descrito por CARLA AMADO GOMES[6] como um fumus non malus, o que ilustra brilhantemente o que queremos dizer.

            Posto isto, cumpre perguntar qual a razão para esta diferenciação de regime (?). A mesma autora[7] vem dizer: “A razão da distinção quanto aos critérios de ponderação da possibilidade de decretamento da providência reside na maior responsabilização do julgador perante a emissão de uma providência antecipatória – que consumirá, total ou parcialmente, a decisão final. Quanto mais a providência cautelar tender a consumir os efeitos (fácticos) da decisão final, maior deve ser o cuidado do juiz na ponderação, forçosamente sumária, da necessidade da sua emissão”. Ao que acima se referiu, exposição de motivos do CPTA vem chamar-lhe “critério gradualista” pelo que se compreende a ideia de adequação entre os efeitos que podem surgir da adopção do meio cautelar e a probabilidade da procedência da acção principal.

 

Miguel Herdade
(19780)

[1]    Pelo menos MARIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ªed., pág.745 e VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, pág. 808
[2]    Também FERNANDA MAÇÃS, As formas de tutela urgente previstas no CPTA, pág. 223, apud MARIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, Comentário.. ob.cit.
[3]    MARIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, Comentário.. ob.cit. Pág. 796
[4]    Pelo que apuramos através de TIAGO ANTUNES, no seu ensino oral.
[5]    Strong prima facie case test, na nomenclatura anglófona; para uma nota comparatística em relação também à judicial review, Cfr. p. ex. J. MANNING, Judical review proceedings, p.42 e ss. 1995
[6]    CARLA AMADO GOMES, O regresso de Ulisses: um olhar sobre a reforma da justiça cautelar administrativa, CJA nº39, pág. 9, Maio/Junho 2003; depois de três anos À espera de Ulisses, Separata da Revista do Ministério Público nº 84, 2000
[7]    CARLA AMADO GOMES, O regresso..ob.cit

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