Parte I: O silêncio da
administração…
Antes de mais, importa esclarecer conceitos: a inércia
administrativa consiste no incumprimento do dever de decidir. Ou seja, quando não
se verifique a dispensa do dever de decidir, nos termos do artigo 9º/2 do CPA,
e perante a pretensão de um particular, a omissão de decisão da Administração dentro do prazo legalmente estabelecido é sempre ilegal. Corresponde às
situações que anteriormente dariam lugar aos actos tácitos, que estabeleciam
garantias aos particulares contra o incumprimento de tal dever. Cumpre então
distinguir a figura do deferimento tácito da figura do indeferimento tácito.
O deferimento tácito vem regulado no artigo 108º do CPA e,
para grande parte da doutrina, é um acto administrativo que resulta de uma
presunção legal, no qual se aceita, nos casos previstos no nº3, que o silêncio
da Administração equivale a um acto positivo de conteúdo favorável.
Já as situações de incumprimento do dever de decidir, que a
lei não qualifique como de deferimento tácito, eram tradicionalmente
qualificadas como situações de indeferimento tácito. Esta figura constituía uma
ficção legal criada pelo legislador, para que se pudesse reagir contra as situações
de inércia da Administração, através da impugnação do acto de indeferimento.
Antes da revisão Constitucional de 1997, e face a um acto de
indeferimento, a única possibilidade que o particular tinha para defender os
seus direitos e interesses, seria intentar uma acção de anulação; era a via
tradicional do recurso de anulação do indeferimento tácito. Foi com a revisão
Constitucional de 1997 que, em Portugal, se deu um passo significativo na
reforma do Contencioso Administrativo, através do abandono da lógica da mera
anulação para um Contencioso de plena jurisdição. É no seu artigo 268º/4, que a
Constituição passa a prever a possibilidade de condenar a Administração na
prática de actos administrativos devidos; deste modo, a administração pode não
só ver anulado o acto administrativo que emitiu, como também ser condenada à
prática do acto legalmente devido. Por sua vez, os actos de indeferimento
deixaram de ser objecto de impugnação, uma vez que estes passaram a dizer
respeito apenas a actos de conteúdo positivo.
Também o CPTA prevê, no seu artigo 46º/2 b), a condenação à
prática do acto devido, sendo uma das modalidades da acção administrativa
especial.
Consequentemente, o acto tácito de
indeferimento, consagrado no artigo 109º do CPA, deixou de fazer sentido: a
recondução do silêncio da Administração a uma presunção legal de acto visava
exclusivamente a tutela jurisdicional do particular, lesado pela inércia
administrativa, permitindo que o mesmo pudesse reagir através de uma acção
impugnatória; no entanto, visto que passou a existir uma acção administrativa
especial por omissão, cujo objecto coincide com o do indeferimento tácito, esta
“ficção” acabou por ver a sua função esvaziada e, por isso, a maioria da
doutrina considera que o artigo 67º do CPTA veio revogar aquele preceito.
Contudo, para alguns autores, este entendimento abrange apenas os casos de
silêncio negativo, e não os casos de deferimento tácito previsto do artigo 108º
do CPA.
Ainda assim, quanto a este último
ponto, importa esclarecer que a doutrina não é unânime e a afirmação não é tão
linear como parece. É verdade que o professor Sérvulo Correia entende não
existir incompatibilidade entre o instituto do deferimento tácito e o meio
processual da acção de condenação, uma vez que esta acção pressupõe a não
emissão de um acto devido, e no deferimento tácito, considera que o acto já
existe; também Vieira de Andrade considera não haver lugar à acção de
condenação em situações de deferimento tácito, preferindo a acção
administrativa especial de impugnação - nas situações em que um terceiro
pretende pôr em causa a validade do acto; ou a acção de reconhecimento - se o
interessado pretender tornar certo o deferimento.
No entanto, o Professor Vasco
Pereira da Silva reitera a possibilidade de pedidos de condenação nestas
situações, não só porque considera o deferimento tácito, também ele, uma ficção
legal, i.e., não o considera um verdadeiro acto administrativo, mas ainda,
porque tem em conta duas hipóteses, nas quais não faria sentido que o pedido
adequado fosse outro que não o de condenação, nomeadamente: 1)nas situações em
que o deferimento tácito é parcialmente desfavorável; 2) na hipótese de ser
favorável para uns e desfavorável para outros, ou seja, numa relação jurídica
multilateral.
Em suma, o Professor considera que “a omissão que constitui pressuposto de admissibilidade do pedido de
condenação à prática do acto devido tanto pode verificar-se nos casos de indeferimento
como de deferimento tácito”.
Podemos assim concluir, que o artigo 67º/1 a) do CPTA, tem
por objecto as situações de incumprimento do dever de decidir por parte da
Administração, o que corresponde tanto às situações da indeferimento tácito
como de deferimento tácito.
Parte II: Actos de recusa:
condenação ou impugnação?
Atentemos agora no caso de
indeferimento expressa, previsto na alínea b) do artigo 67º, e nos problemas
que se poderão levantar.
Como decorre do artigo 67º do CPTA,
a omissão do acto não é a única situação que possibilita a acção de condenação
à prática do acto devido. O indeferimento expresso do acto devido, e a recusa
de apreciação de requerimento, são também fundamentos desta acção, não obstante
o Professor Vasco Pereira da Silva considerar a existência do acto irrelevante,
uma vez que, o que está em causa na acção de condenação é a própria relação
jurídica substantiva, e não o acto propriamente dito (artigo 66º/2 do CPTA).
Decorre ainda do artigo 51º/4 do
CPTA, a impossibilidade do autor deduzir apenas um pedido de estrita anulação,
relativamente a um acto de indeferimento, consagrando expressamente que se o
fizer, o tribunal deve convidá-lo a substituir a sua petição inicial, de modo a
formular um pedido de condenação à prática do acto devido.
É certo que, tanto o pedido de anulação, como o de condenação,
são espécies da acção administrativa especial, e por isso, a não utilização do
meio processual adequado não levanta problemas de negação de justiça. No
entanto, o legislador preferiu o pedido de condenação sobre o de anulação, numa
situação de “conflito de pedidos”,
resolvendo o problema no caso da acção proposta não ser a adequada.
Todavia, em situações excepcionais, Mário
Aroso de Almeida entende ser admissível um pedido de estrita anulação, em
detrimento de um pedido de condenação. Por exemplo, nos casos em que já não
existe interesse ou possibilidade do particular obter o acto administrativo
pretendido.
A questão que agora se levanta é a seguinte: e no caso dos
actos híbridos, isto é, nos actos parcialmente favoráveis/desfavoráveis, pode o
particular optar entre a propositura de uma acção de impugnação e uma acção
condenatória?
Ao contrário do que decorre das situações de pura omissão,
nas quais se torna claro que o meio adequado será a acção de condenação, porque
a pretensão do particular seria exclusivamente a de condenar a entidade
competente à prática do acto ilegalmente omitido, nas situações de recusa da
prática do acto devido, a autonomia dos pressupostos entre a acção de
impugnação e de condenação não é tão evidente, e por isso, é viável considerar
a possibilidade de sobreposição entre as duas, como refere Paula Barbosa.
É evidente que, se o particular for confrontado com um acto
de indeferimento, a acção de condenação será a via processual mais adequada,
uma vez que a sentença proferida no âmbito de uma condenação é sempre mais
ampla, na medida em que o particular poderá não só conseguir a invalidação do
acto, como também, a condenação da administração a agir.
Todavia, há situações que não são tão claras, como é o caso
dos (referidos anteriormente) actos híbridos. Nesta hipótese, o particular pode
deparar-se com um acto parcialmente favorável/desfavorável. E no caso de o acto
não ser estritamente negativo, nem totalmente positivo, fica a dúvida: a acção
adequada será a de impugnação, com a possibilidade de cumulação com pedido
condenatório, ou apenas a acção de condenação?
A mera anulação do acto não corresponderia aos interesses do
particular, uma vez que este não pretende obter apenas a anulação total do
acto, nem mesmo a anulação parcial, pois não seria suficiente para satisfazer
os seus interesses; por sua vez, o particular não tem, também, como principal
interesse, obter a emissão do acto devido, mas sim a modificação do acto já praticado.
Paula Barbosa entende que perante situações como esta, é mais vantajoso a
aplicação da acção de condenação, sem que seja necessário cumular pedidos, na
medida em que esta acção permite “a
anulação (implícita), mas apenas na medida exacta da ilegalidade do acto, e,
simultaneamente, a condenação (…) naquilo que for devido”.
Antes de concluir, importa ainda esclarecer a posição de
Vieira da Andrade quanto ao tipo de meio processual a utilizar nas hipóteses de
indeferimento parcial. Este autor adopta uma posição que se afasta do defendido
anteriormente: no que respeita aos actos positivos que contenham declarações tácitas
de indeferimento parcial da pretensão, aceita a utilização isolada do pedido de
impugnação, e nunca a acção de condenação autónoma, sendo que, considera a
possibilidade de utilização desta última apenas em cumulação com o pedido de anulação
(artigos 47/2 a) e 70º/3 do CPTA).
Em suma, para defender a via da acção condenatória (autónoma),
que me parece a mais adequada nestas situações, é necessário fazer prevalecer
neste tipo de actos o seu conteúdo negativo, isto é, vendo-o como um acto de
indeferimento parcial, por não ser concedida a pretensão total do particular,
ou como um acto totalmente negativo, nos casos em que o próprio acto se revele
inútil face ao pedido apresentado. Deste modo, o que é tido em conta é a insatisfação
do particular; o que sucede é que o conteúdo deste tipo de actos em nada se
assemelha à sua aparência externa e, por isso, a via da acção condenatória será
a mais adequada, uma vez que permitirá a obtenção do melhor resultado para o
particular através da anulação parcial do acto e da condenação da Administração
a modificar esse mesmo acto.
Joana Martins
Bibliografia:
- Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise”, Almedina, 2009
- Mário Aroso de Almeida, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais
Administrativos”, 2012
- Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 2006
- Paula Barbosa, “A acção de condenação no acto administrativo legalmente devido”, aafdl,
2007
- Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, “Código de Processo nos Tribunais
Administrativos Anotados”, 2006
- José Manuel Sérvulo Correia, in Cadernos de Justiça Administrativa, “O incumprimento do dever de decidir”, nº
54.
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