segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O âmbito de aplicação da acção de condenação à prática de acto legalmente devido


Parte I: O silêncio da administração…

Antes de mais, importa esclarecer conceitos: a inércia administrativa consiste no incumprimento do dever de decidir. Ou seja, quando não se verifique a dispensa do dever de decidir, nos termos do artigo 9º/2 do CPA, e perante a pretensão de um particular, a omissão de decisão da Administração dentro do prazo legalmente estabelecido é sempre ilegal. Corresponde às situações que anteriormente dariam lugar aos actos tácitos, que estabeleciam garantias aos particulares contra o incumprimento de tal dever. Cumpre então distinguir a figura do deferimento tácito da figura do indeferimento tácito.
O deferimento tácito vem regulado no artigo 108º do CPA e, para grande parte da doutrina, é um acto administrativo que resulta de uma presunção legal, no qual se aceita, nos casos previstos no nº3, que o silêncio da Administração equivale a um acto positivo de conteúdo favorável.
Já as situações de incumprimento do dever de decidir, que a lei não qualifique como de deferimento tácito, eram tradicionalmente qualificadas como situações de indeferimento tácito. Esta figura constituía uma ficção legal criada pelo legislador, para que se pudesse reagir contra as situações de inércia da Administração, através da impugnação do acto de indeferimento.

Antes da revisão Constitucional de 1997, e face a um acto de indeferimento, a única possibilidade que o particular tinha para defender os seus direitos e interesses, seria intentar uma acção de anulação; era a via tradicional do recurso de anulação do indeferimento tácito. Foi com a revisão Constitucional de 1997 que, em Portugal, se deu um passo significativo na reforma do Contencioso Administrativo, através do abandono da lógica da mera anulação para um Contencioso de plena jurisdição. É no seu artigo 268º/4, que a Constituição passa a prever a possibilidade de condenar a Administração na prática de actos administrativos devidos; deste modo, a administração pode não só ver anulado o acto administrativo que emitiu, como também ser condenada à prática do acto legalmente devido. Por sua vez, os actos de indeferimento deixaram de ser objecto de impugnação, uma vez que estes passaram a dizer respeito apenas a actos de conteúdo positivo.
Também o CPTA prevê, no seu artigo 46º/2 b), a condenação à prática do acto devido, sendo uma das modalidades da acção administrativa especial.

Consequentemente, o acto tácito de indeferimento, consagrado no artigo 109º do CPA, deixou de fazer sentido: a recondução do silêncio da Administração a uma presunção legal de acto visava exclusivamente a tutela jurisdicional do particular, lesado pela inércia administrativa, permitindo que o mesmo pudesse reagir através de uma acção impugnatória; no entanto, visto que passou a existir uma acção administrativa especial por omissão, cujo objecto coincide com o do indeferimento tácito, esta “ficção” acabou por ver a sua função esvaziada e, por isso, a maioria da doutrina considera que o artigo 67º do CPTA veio revogar aquele preceito. Contudo, para alguns autores, este entendimento abrange apenas os casos de silêncio negativo, e não os casos de deferimento tácito previsto do artigo 108º do CPA.

Ainda assim, quanto a este último ponto, importa esclarecer que a doutrina não é unânime e a afirmação não é tão linear como parece. É verdade que o professor Sérvulo Correia entende não existir incompatibilidade entre o instituto do deferimento tácito e o meio processual da acção de condenação, uma vez que esta acção pressupõe a não emissão de um acto devido, e no deferimento tácito, considera que o acto já existe; também Vieira de Andrade considera não haver lugar à acção de condenação em situações de deferimento tácito, preferindo a acção administrativa especial de impugnação - nas situações em que um terceiro pretende pôr em causa a validade do acto; ou a acção de reconhecimento - se o interessado pretender tornar certo o deferimento.

No entanto, o Professor Vasco Pereira da Silva reitera a possibilidade de pedidos de condenação nestas situações, não só porque considera o deferimento tácito, também ele, uma ficção legal, i.e., não o considera um verdadeiro acto administrativo, mas ainda, porque tem em conta duas hipóteses, nas quais não faria sentido que o pedido adequado fosse outro que não o de condenação, nomeadamente: 1)nas situações em que o deferimento tácito é parcialmente desfavorável; 2) na hipótese de ser favorável para uns e desfavorável para outros, ou seja, numa relação jurídica multilateral.
Em suma, o Professor considera que “a omissão que constitui pressuposto de admissibilidade do pedido de condenação à prática do acto devido tanto pode verificar-se nos casos de indeferimento como de deferimento tácito”.

Podemos assim concluir, que o artigo 67º/1 a) do CPTA, tem por objecto as situações de incumprimento do dever de decidir por parte da Administração, o que corresponde tanto às situações da indeferimento tácito como de deferimento tácito.



Parte II: Actos de recusa: condenação ou impugnação?

Atentemos agora no caso de indeferimento expressa, previsto na alínea b) do artigo 67º, e nos problemas que se poderão levantar.

Como decorre do artigo 67º do CPTA, a omissão do acto não é a única situação que possibilita a acção de condenação à prática do acto devido. O indeferimento expresso do acto devido, e a recusa de apreciação de requerimento, são também fundamentos desta acção, não obstante o Professor Vasco Pereira da Silva considerar a existência do acto irrelevante, uma vez que, o que está em causa na acção de condenação é a própria relação jurídica substantiva, e não o acto propriamente dito (artigo 66º/2 do CPTA).

Decorre ainda do artigo 51º/4 do CPTA, a impossibilidade do autor deduzir apenas um pedido de estrita anulação, relativamente a um acto de indeferimento, consagrando expressamente que se o fizer, o tribunal deve convidá-lo a substituir a sua petição inicial, de modo a formular um pedido de condenação à prática do acto devido.
É certo que, tanto o pedido de anulação, como o de condenação, são espécies da acção administrativa especial, e por isso, a não utilização do meio processual adequado não levanta problemas de negação de justiça. No entanto, o legislador preferiu o pedido de condenação sobre o de anulação, numa situação de “conflito de pedidos”, resolvendo o problema no caso da acção proposta não ser a adequada.
Todavia, em situações excepcionais, Mário Aroso de Almeida entende ser admissível um pedido de estrita anulação, em detrimento de um pedido de condenação. Por exemplo, nos casos em que já não existe interesse ou possibilidade do particular obter o acto administrativo pretendido.

A questão que agora se levanta é a seguinte: e no caso dos actos híbridos, isto é, nos actos parcialmente favoráveis/desfavoráveis, pode o particular optar entre a propositura de uma acção de impugnação e uma acção condenatória?

Ao contrário do que decorre das situações de pura omissão, nas quais se torna claro que o meio adequado será a acção de condenação, porque a pretensão do particular seria exclusivamente a de condenar a entidade competente à prática do acto ilegalmente omitido, nas situações de recusa da prática do acto devido, a autonomia dos pressupostos entre a acção de impugnação e de condenação não é tão evidente, e por isso, é viável considerar a possibilidade de sobreposição entre as duas, como refere Paula Barbosa.
É evidente que, se o particular for confrontado com um acto de indeferimento, a acção de condenação será a via processual mais adequada, uma vez que a sentença proferida no âmbito de uma condenação é sempre mais ampla, na medida em que o particular poderá não só conseguir a invalidação do acto, como também, a condenação da administração a agir.

Todavia, há situações que não são tão claras, como é o caso dos (referidos anteriormente) actos híbridos. Nesta hipótese, o particular pode deparar-se com um acto parcialmente favorável/desfavorável. E no caso de o acto não ser estritamente negativo, nem totalmente positivo, fica a dúvida: a acção adequada será a de impugnação, com a possibilidade de cumulação com pedido condenatório, ou apenas a acção de condenação?

A mera anulação do acto não corresponderia aos interesses do particular, uma vez que este não pretende obter apenas a anulação total do acto, nem mesmo a anulação parcial, pois não seria suficiente para satisfazer os seus interesses; por sua vez, o particular não tem, também, como principal interesse, obter a emissão do acto devido, mas sim a modificação do acto já praticado. Paula Barbosa entende que perante situações como esta, é mais vantajoso a aplicação da acção de condenação, sem que seja necessário cumular pedidos, na medida em que esta acção permite “a anulação (implícita), mas apenas na medida exacta da ilegalidade do acto, e, simultaneamente, a condenação (…) naquilo que for devido”.

Antes de concluir, importa ainda esclarecer a posição de Vieira da Andrade quanto ao tipo de meio processual a utilizar nas hipóteses de indeferimento parcial. Este autor adopta uma posição que se afasta do defendido anteriormente: no que respeita aos actos positivos que contenham declarações tácitas de indeferimento parcial da pretensão, aceita a utilização isolada do pedido de impugnação, e nunca a acção de condenação autónoma, sendo que, considera a possibilidade de utilização desta última apenas em cumulação com o pedido de anulação (artigos 47/2 a) e 70º/3 do CPTA).

Em suma, para defender a via da acção condenatória (autónoma), que me parece a mais adequada nestas situações, é necessário fazer prevalecer neste tipo de actos o seu conteúdo negativo, isto é, vendo-o como um acto de indeferimento parcial, por não ser concedida a pretensão total do particular, ou como um acto totalmente negativo, nos casos em que o próprio acto se revele inútil face ao pedido apresentado. Deste modo, o que é tido em conta é a insatisfação do particular; o que sucede é que o conteúdo deste tipo de actos em nada se assemelha à sua aparência externa e, por isso, a via da acção condenatória será a mais adequada, uma vez que permitirá a obtenção do melhor resultado para o particular através da anulação parcial do acto e da condenação da Administração a modificar esse mesmo acto.


Joana Martins



Bibliografia:

- Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2009
- Mário Aroso de Almeida, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 2012
- Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 2006
- Paula Barbosa, “A acção de condenação no acto administrativo legalmente devido”, aafdl, 2007
- Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotados”, 2006
- José Manuel Sérvulo Correia, in Cadernos de Justiça Administrativa, “O incumprimento do dever de decidir”, nº 54.







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