Processo N.º 23/89.1
I. Ao abrigo
do artigo 219º/1 da Constituição da República Portuguesa e 85º/2 do Código de
Processo dos Tribunais Administrativos (doravante: CPTA), vem o Ministério
Público pronunciar-se sobre o mérito da presente causa.
II. As partes
celebraram, no dia 26 de Abril de 2010, um contrato de fornecimento de duzentas
e sessenta viaturas “pão duro”, convencionando-se a entrega das mesmas em treze
parcelas. A contraprestação consistia no pagamento duzentos e sessenta milhões
de euros (um milhão de euros por unidade).
Foram cumpridas a
primeira, segunda, terceira, sexta, sétima, oitava, nona e décima tranches de
viaturas, tendo faltado a entrega das quarenta viaturas correspondentes à
quarta e quinta parcelas. As partes discordam nos motivos deste
incumprimento.
A situação de cumprimento
da décima primeira parcela é controversa, dado que as partes não concordam na
data em que esta deveria ter sido entregue (antes ou depois do Despacho
369/2012, despacho onde é notificada a resolução).
No dia 15 de Novembro de
2012, foi a Autora notificada da resolução do contrato pelo Ministério da
Defesa, através do referido Despacho 369/2012. No mesmo alega-se o
incumprimento dos termos do contrato, quer pelo atraso na entrega das viaturas,
quer por defeitos destas. Além disto, o Ministério invoca também razões de
excepcional interesse público, pelas “difíceis condições económico-financeiras
do país”, para proceder à referida resolução.
III. Cumpre
agora conhecer do mérito da presente causa.
Decorre da situação de facto supra
enunciada a necessidade de intervenção do Ministério Público, que se funda
na defesa de interesses públicos especialmente relevantes, bem como de valores ou bens constitucionalmente protegidos –
artigo 85º/2 e 9º/2 do CPTA. A Defesa Nacional é um valor constitucionalmente
protegido, como demonstram os artigos 273º a 275º da Lei Fundamental, e um
interesse público especialmente relevante. No presente caso, os vicíos que surgiram
na relação contratual põem em a causa a Defesa Nacional e os compromissos que o
Estado Português tem para com determinadas organizações internacionais. Mas a
problemática não se resume a isto.
Portugal vive momentos de grande dificuldade económico-financeira, tendo
a obrigação de cumprir minuciosamente o Memorando de Entendimento[1]. Este
facto, a par do valor do contrato que está em causa, e da possível indemnização
que Portugal terá que suportar, leva a que o Ministério Público venha, ao
abrigo da sua faculdade de intervenção, pronunciar-se sobre o mérito da causa.
IV. Na
execução dos contratos administrativos não estão em causa meros interesses
privados, mas também o interesse público. Mesmo quando a Administração Pública
escolhe a forma de contrato administrativo para actuar, não deixa de existir
uma prossecução do interesse público: um “interesse
público contratualizado”. Devido a isto, a lógica do pacto não pode ser incondicional,
não pode haver uma absoluta paridade das partes, sendo por isso imperativa a
manutenção de certos poderes de autoridade pelo contraente público. Em suma, justifica-se
que a administração possa adoptar actos administrativos na fase de execução do
contrato (os chamados actos administrativos contratuais), pois “a actuação por acto administrativo deve
existir (e estar legalmente prevista) para assegurar a permanente e eficaz
disponibilidade administrativa do interesse público contratualizado (…)” ( Rodrigo Esteves de Oliveira, “O acto administrativo contratual”, CJA,
63, 2007, p. 16-17).
V. A Resolução
consubstancia “uma forma de extinção da relação contratual, por
declaração unilateral de um dos contraentes, baseada num fundamento ocorrido
posteriormente à celebração do contrato” (Menezes Leitão, Direito das
Obrigações, II, 7ª edição, 2010, pp. 104-105). Nos termos do artigo 307º/2-d)
do Código dos Contratos Públicos (adiante: CCP) a resolução unilateral é feita através
da adopção, pela administração do respectivo acto administrativo. Este acto administrativo
contratual carece (na linha do que sucede no regime da resolução no direito
civil) de fundamento legal ou contratual. No concerne à lei, vem o CCP, nos artigos
302º/e) e 307º/2-d) admitir tal possibilidade, ainda que restringida a três
fundamentos: situações de incumprimento, de alteração das circunstâncias ou de
interesse público (333º a 335º CCP). Apesar disto, a qualificação da resolução por alteração anormal e imprevisível das circunstâncias
como acto administrativo não é unânime na doutrina, havendo quem a considere
uma mera declaração negocial (ver, Mário
Aroso de Almeida, “Contratos
administrativos e poderes de conformação do contraente público no novo Código
dos Contratos Públicos”, CJA, 66, 2007, p. 14-15).
VI. No que
respeita à resolução por incumprimento, é preciso realçar que “incumbe ao
co-contratante a exacta e pontual execução das prestações contratuais” (art.
288º CCP). A resolução sancionatória, nomeadamente aquela que se fundamenta em
situações de incumprimento contratual (e
que aqui nos interessa), pressupõe o preenchimento de certos requisitos. Em
primeiro lugar estabelece-se a necessidade de uma situação de incumprimento
definitivo da prestação em causa pelo co-contraente. O incumprimento definitivo,
enquanto fundamento resolutivo, deve ser precedido da notificação, pelo
contraente público, ao co-contraente, onde aquele estabelece um prazo
(razoável) para que este proceda ao cumprimento da prestação devida (art.
325º/1). Só após o decurso do prazo razoável estabelecido é que pode o
contratante público recorrer à resolução por incumprimento definitivo (arts.
325º/2 e 333º/1 a)). “(…) a resolução
fundada em incumprimento do contrato pressupõe um incumprimento definitivo, o
qual, em regra, só se alcança após a notificação do co-contratante para
cumprir”. (Pedro Gonçalves, Cumprimento e Incumprimento do Contrato
Administrativo, Estudos de Contratação Pública, I, 2008, p. 608-609).
Mas, para além da regra
geral, é verdade que se pode alcançar o incumprimento definitivo sem a
respectiva interpelação, nomeadamente quando o credor perde o interesse na
prestação ou quando esta se torna impossível. Dado que o interesse na prestação
pela parte do credor deve apreciado objectivamente (art. 808º/2 CC),
parece-nos, in casu, que considerando
o réu como “homem médio”, este continuaria a necessitar dos veículos militares
para a manutenção das suas tropas, pelo que mantém interesse no cumprimento da
prestação. Dos dados remetidos ao Ministério Público também não se retira que a
autora não estivesse em condições de cumprir, aliás, parece que tinha intenção
de fazê-lo até ser notificada da resolução, facto pelo qual não se verifica uma
situação de impossibilidade absoluta.
Note-se que a resolução do
contrato por incumprimento deve, para além do já descrito, funcionar como a ultima ratio da defesa do interesse público (Freitas do Amaral, Curso de
Direito Administrativo, 2001, p. 647). O contraente público deveria, caso
isso fosse possível no caso concreto, optar pela efectivação das prestações de
natureza fungível em falta, directamente ou por intermédio de terceiro, ou
ainda aplicar sanções pecuniárias (art. 329º). A
resolução, para além de estar vinculada ao princípio da legalidade (já que só
pode ter como fundamento algum dos motivos do art. 333º/1) deve ser
proporcional. Assim, não se admitirá uma resolução que seja desproporcional à
medida de incumprimento. Também não se pode aceitar um acto de resolução
“prejudicial para o interesse público”, já que este é um vector essencial à
actividade administrativa – 266º/1 CRP. (Pedro
Gonçalves, ob. cit., p. 612).
No caso em apreço, não há
dados assentes sobre o que efectivamente aconteceu. Não se sabe se o autor incumpriu,
de facto, as suas obrigações - a entrega das 4ª, 5ª e 11ª parcela de veículos
militares. Pode-se, contudo, concluir que na falta de prova de interpelação
admonitória por parte do Ministério da Defesa, e dada a essencialidade desta
para que se verifique o incumprimento definitivo da prestação, não pode o mesmo
servir de fundamento ao acto de resolução. Reitera-se, assim, que a simples
mora não constitui fundamento de acto resolutivo.
VII. Quanto à possibilidade de resolver o
contrato com base na alteração de circunstâncias, exige-se que esta atinja, de
forma anormal e imprevisível, as
condições que levaram as partes a tomar a decisão de contratar. Entende-se, a este
propósito, que a alteração de circunstâncias se
reconduz à superveniência, em fase de
execução, de circunstâncias
independentes da vontade dos contraentes e, por isso, imprevisíveis.
Neste sentido, tais alterações, com referência ao momento da conclusão do
contrato, transcendem o risco
ordinário do negócio, criando um estado
de imprevisão. Além disto, exige-se
também que o contraente que invoca a alteração não tivesse contratado se, no
momento da celebração do contrato, tivesse conhecimento dos factos
supervenientes relevantes.
De acordo com o art. 312º, alínea a) (ex vi 335º/1), é
necessário, em primeiro lugar, que a alteração seja anormal. Em abstracto, e
recorrendo a um juízo de normalidade, o facto de Portugal estar sujeito a
fortes restrições orçamentais impostas pelo Memorando da Troika, é uma
circunstância anormal.
Contudo, isto não basta, sendo também necessário que o ambiente
circunstancial do contrato sofra uma alteração imprevisível (diferentemente
do que sucede no regime previsto no Código Civil, em que não exige que a
alteração seja imprevisível). Neste pressuposto, mais dúvidas se levantam. De
facto, saber se a necessidade de recorrer a um resgate financeiro em 2011 não
era previsível cria muitas dificuldades.
No entanto, o Ministério Público considera que esta alteração
superveniente ainda poderá ser considerada como imprevisível. De facto, aquando
da celebração do contrato, a situação económica e financeira do país, destarte
ser já preocupante, não fazia adivinhar o recurso à ajuda do FMI, BCE e Comissão
Europeia (Troika). Lembre-se, a este respeito, as declarações, quer dos nossos
governantes, quer de governantes de instituições internacionais, acerca do
carácter passageiro da crise e da rápida e forte recuperação económica que se
avizinhava.
A possibilidade de recurso ao instituto da alteração das circunstâncias
encontra-se limitada pelo seguinte: embora tenha havido uma alteração anormal e
imprevisível (que se admite ser discutível), o equilíbrio contratual não
foi afectado por esta. Significa isto que a prestação do contraente público não
se tornou excessivamente onerosa em relação à contraprestação. A falta de
onerosidade excessiva, não sendo o equilíbrio do contrato posto em causa,
impossibilita, desde logo, o recurso à figura da resolução por alteração das
circunstâncias prevista no CCP. “A alteração das circunstâncias (…) deriva de
uma causa objectiva,
externa às partes, imprevisível, que torna a manutenção da relação
contratual
insustentável nos termos inicialmente previstos devido à excessiva onerosidade
que provoca
para o adjudicatário” (Carla Amado Gomes, “A conformação da relação contratual no
Código dos Contratos Públicos”, 2008, p. 16).
VIII. No que concerne à possibilidade de a resolução do contrato se fundar
em razões de interesse público, cumpre verificar do preenchimento dos
pressupostos enunciados no artigo 334º/1 CCP. De acordo com este preceito,
exige-se desde logo, uma fundamentação material, o pagamento da justa
indemnização e que esta via constitua a ultima ratio de tutela do
interesse público. O fundamento da possibilidade de resolução por interesse
público passa pela necessidade de “evitar males maiores do que os já
produzidos pela dificuldade ou impossibilidade de cumprimento do pactuado”
(Marcello Caetano, Manual de
Direito Administrativo, I, 10ª edição, 1980, pp. 637-638).
Relativamente à necessidade de fundamentação, é imperativo realçar que
este dever de fundamentação é essencialmente material. Daqui se retira que não
basta a mera alegação de um fundamento, é antes necessário que este fundamento
esteja concretamente identificado e conexo, quer com o objecto do contrato,
quer com as necessidades de interesse público.
Da falta da devida fundamentação, redunda a invalidade do acto, ainda
que distintamente entendida na doutrina, como bem refere a Autora. Por um lado,
entende-se que, sendo o dever de fundamentação do acto um requisito meramente
procedimental, não configurando um direito, liberdade ou garantia (ou direito
de natureza análoga), não se pode subsumir a nenhuma alínea do 133º/2 do Código
de Procedimento Administrativo (CPA), e logo, não se poderá cominar o acto com
o vício de nulidade (133º/1 CPA), mas tão-só com a anulabilidade (135º CPA). “O
mesmo se diga dos direitos subjectivos públicos de carácter administrativo (…)
cuja violação é, quanto a nós, geradora de mera anulabilidade por não estar em
causa a protecção da dignidade da pessoa humana” (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2001,
pp. 412-413). Numa perspectiva
distinta, entende-se que o dever de fundamentação configura um verdadeiro
direito fundamental dos administrados, pois permite a sua defesa em relação ao
exercício dos poderes públicos (Marcelo
Rebelo de Sousa/ André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, III,
2ª edição, 2009, p. 172). Neste
entendimento, a falta de fundamentação deve ser enquadrada na alínea d) do
artigo 133º/2 do CPA, sendo o acto ferido com o vício da nulidade (134º CPA).
Entende assim o Ministério Público que, ainda que
se encontrassem preenchidos os demais pressupostos atinentes à possibilidade de
resolução por razões de interesse público, a falta de fundamentação material
redundaria na invalidade do acto.
Apesar de o réu não o ter alegado expressamente, o acto de resolução do
contrato, constante de despacho por si emitido, parece invocar razões de
interesse público, nomeadamente as difíceis condições económico-financeiras em
que Portugal se encontra. O interesse público, «há-de, em primeiro lugar,
tratar-se naturalmente de casos imperiosos, seja pela dimensão dos eventos, seja
pela importância do interesse público envolvido, não podendo servir como tal
nem o comportamento do contratante particular, nem as desvantagens económicas
(para a Administração) do contrato». (Pedro
Gonçalves, O Contrato Administrativo, 2003, p. 133). Parece-nos,
deste modo, necessário analisar de que forma estas circunstâncias interferiram
para a modificação do interesse público relevante¸ i.e., as necessidades
da colectividade.
Aquando da celebração do
contrato, a conjuntura económica do país não obrigava a preterir as políticas
de defesa nacional para a consolidação das contas públicas. Actualmente, dadas
as exigentes restrições orçamentais, impostas pelo Memorando de Entendimento,
haveria que reconsiderar a preponderância de tais interesses. De facto, a
necessidade de assegurar a defesa nacional, enquanto imperativo constitucional,
estará sempre condicionada às efectivas possibilidades económicas de um país,
devendo ceder perante a impossibilidade de manutenção económica. Cabe ao
Ministro da Defesa explicitar quais os fundamentos (a verdadeira situação de
facto, a nível económico e financeiro, devidamente comprovada) que exigem a
preponderância da manutenção de uma condição financeira sustentável face à
garantia de meios de defesa nacional, sem os quais não se pode concluir pelo
preenchimento do pressuposto de interesse público em causa.
IX. Em suma:
- Não poderia haver lugar a resolução com fundamento em incumprimento
contratual já que não se provou o incumprimento definitivo (vide ponto
VI);
- não se poderia ter adoptado a resolução com base em alteração das
circunstâncias, já que esta, a existir uma situação anormal e imprevisível, não
afectou o equilíbrio do contrato (vide ponto VII);
- por fim, no que concerne à possibilidade de resolução unilateral por
razões interesse público, não entende o Ministério Público que os fundamentos
desta estejam preenchidos, já que, quer quanto à fundamentação, quer quanto à
efectiva situação de interesse público relevante, o réu não alegou os factos
que as provam (vide ponto VIII).
Tendo em conta
o acima exposto, considera o Ministério Público que a acção especial de
impugnação do acto administrativo, i.e., da resolução, deve ser declarada
procedente. Decorrerá dessa procedência, o restabelecimento da
situação existente no período anterior à emissão do acto de resolução e a
condenação do réu no pagamento da respectiva indemnização, caso se provem todos
os factos constitutivos do direito à indemnização.
[1]
Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades da Política Económica
celebrado entre a República Portuguesa e o Banco Central Europeu, a Comissão
Europeia e o Fundo Monetário Internacional no quadro do Programa de Auxílio
Financeiro a Portugal.
Daniel Bogalheiro
Isabel Ferreira
Joana Martins
Joel Manuel
Mafalda Melim
Márcia Farias
Sem comentários:
Enviar um comentário