terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Parecer do Ministério Público


Processo N.º 23/89.1


I. Ao abrigo do artigo 219º/1 da Constituição da República Portuguesa e 85º/2 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante: CPTA), vem o Ministério Público pronunciar-se sobre o mérito da presente causa.

II. As partes celebraram, no dia 26 de Abril de 2010, um contrato de fornecimento de duzentas e sessenta viaturas “pão duro”, convencionando-se a entrega das mesmas em treze parcelas. A contraprestação consistia no pagamento duzentos e sessenta milhões de euros (um milhão de euros por unidade).
Foram cumpridas a primeira, segunda, terceira, sexta, sétima, oitava, nona e décima tranches de viaturas, tendo faltado a entrega das quarenta viaturas correspondentes à quarta e quinta parcelas. As partes discordam nos motivos deste incumprimento. 
A situação de cumprimento da décima primeira parcela é controversa, dado que as partes não concordam na data em que esta deveria ter sido entregue (antes ou depois do Despacho 369/2012, despacho onde é notificada a resolução).
No dia 15 de Novembro de 2012, foi a Autora notificada da resolução do contrato pelo Ministério da Defesa, através do referido Despacho 369/2012. No mesmo alega-se o incumprimento dos termos do contrato, quer pelo atraso na entrega das viaturas, quer por defeitos destas. Além disto, o Ministério invoca também razões de excepcional interesse público, pelas “difíceis condições económico-financeiras do país”, para proceder à referida resolução.

III. Cumpre agora conhecer do mérito da presente causa.  Decorre da situação de facto supra enunciada a necessidade de intervenção do Ministério Público, que se funda na defesa de interesses públicos especialmente relevantes, bem como de valores ou bens constitucionalmente protegidos – artigo 85º/2 e 9º/2 do CPTA. A Defesa Nacional é um valor constitucionalmente protegido, como demonstram os artigos 273º a 275º da Lei Fundamental, e um interesse público especialmente relevante. No presente caso, os vicíos que surgiram na relação contratual põem em a causa a Defesa Nacional e os compromissos que o Estado Português tem para com determinadas organizações internacionais. Mas a problemática não se resume a isto.  Portugal vive momentos de grande dificuldade económico-financeira, tendo a obrigação de cumprir minuciosamente o Memorando de Entendimento[1]. Este facto, a par do valor do contrato que está em causa, e da possível indemnização que Portugal terá que suportar, leva a que o Ministério Público venha, ao abrigo da sua faculdade de intervenção, pronunciar-se sobre o mérito da causa.

IV. Na execução dos contratos administrativos não estão em causa meros interesses privados, mas também o interesse público. Mesmo quando a Administração Pública escolhe a forma de contrato administrativo para actuar, não deixa de existir uma prossecução do interesse público: um “interesse público contratualizado”. Devido a isto, a lógica do pacto não pode ser incondicional, não pode haver uma absoluta paridade das partes, sendo por isso imperativa a manutenção de certos poderes de autoridade pelo contraente público. Em suma, justifica-se que a administração possa adoptar actos administrativos na fase de execução do contrato (os chamados actos administrativos contratuais), pois “a actuação por acto administrativo deve existir (e estar legalmente prevista) para assegurar a permanente e eficaz disponibilidade administrativa do interesse público contratualizado (…)” ( Rodrigo Esteves de Oliveira, “O acto administrativo contratual”, CJA, 63, 2007, p. 16-17).

V. A Resolução consubstancia “uma forma de extinção da relação contratual, por declaração unilateral de um dos contraentes, baseada num fundamento ocorrido posteriormente à celebração do contrato” (Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 7ª edição, 2010, pp. 104-105). Nos termos do artigo 307º/2-d) do Código dos Contratos Públicos (adiante: CCP) a resolução unilateral é feita através da adopção, pela administração do respectivo acto administrativo. Este acto administrativo contratual carece (na linha do que sucede no regime da resolução no direito civil) de fundamento legal ou contratual. No concerne à lei, vem o CCP, nos artigos 302º/e) e 307º/2-d) admitir tal possibilidade, ainda que restringida a três fundamentos: situações de incumprimento, de alteração das circunstâncias ou de interesse público (333º a 335º CCP). Apesar disto, a qualificação da resolução por alteração anormal e imprevisível das circunstâncias como acto administrativo não é unânime na doutrina, havendo quem a considere uma mera declaração negocial (ver, Mário Aroso de Almeida, “Contratos administrativos e poderes de conformação do contraente público no novo Código dos Contratos Públicos”, CJA, 66, 2007, p. 14-15).

VI. No que respeita à resolução por incumprimento, é preciso realçar que “incumbe ao co-contratante a exacta e pontual execução das prestações contratuais” (art. 288º CCP). A resolução sancionatória, nomeadamente aquela que se fundamenta em situações de incumprimento contratual (e que aqui nos interessa), pressupõe o preenchimento de certos requisitos. Em primeiro lugar estabelece-se a necessidade de uma situação de incumprimento definitivo da prestação em causa pelo co-contraente. O incumprimento definitivo, enquanto fundamento resolutivo, deve ser precedido da notificação, pelo contraente público, ao co-contraente, onde aquele estabelece um prazo (razoável) para que este proceda ao cumprimento da prestação devida (art. 325º/1). Só após o decurso do prazo razoável estabelecido é que pode o contratante público recorrer à resolução por incumprimento definitivo (arts. 325º/2 e 333º/1 a)). “(…) a resolução fundada em incumprimento do contrato pressupõe um incumprimento definitivo, o qual, em regra, só se alcança após a notificação do co-contratante para cumprir”. (Pedro Gonçalves, Cumprimento e Incumprimento do Contrato Administrativo, Estudos de Contratação Pública, I, 2008, p. 608-609).
Mas, para além da regra geral, é verdade que se pode alcançar o incumprimento definitivo sem a respectiva interpelação, nomeadamente quando o credor perde o interesse na prestação ou quando esta se torna impossível. Dado que o interesse na prestação pela parte do credor deve apreciado objectivamente (art. 808º/2 CC), parece-nos, in casu, que considerando o réu como “homem médio”, este continuaria a necessitar dos veículos militares para a manutenção das suas tropas, pelo que mantém interesse no cumprimento da prestação. Dos dados remetidos ao Ministério Público também não se retira que a autora não estivesse em condições de cumprir, aliás, parece que tinha intenção de fazê-lo até ser notificada da resolução, facto pelo qual não se verifica uma situação de impossibilidade absoluta.
Note-se que a resolução do contrato por incumprimento deve, para além do já descrito, funcionar como a ultima ratio da defesa do interesse público (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2001, p. 647). O contraente público deveria, caso isso fosse possível no caso concreto, optar pela efectivação das prestações de natureza fungível em falta, directamente ou por intermédio de terceiro, ou ainda aplicar sanções pecuniárias (art. 329º). A resolução, para além de estar vinculada ao princípio da legalidade (já que só pode ter como fundamento algum dos motivos do art. 333º/1) deve ser proporcional. Assim, não se admitirá uma resolução que seja desproporcional à medida de incumprimento. Também não se pode aceitar um acto de resolução “prejudicial para o interesse público”, já que este é um vector essencial à actividade administrativa – 266º/1 CRP. (Pedro Gonçalves, ob. cit., p. 612).
No caso em apreço, não há dados assentes sobre o que efectivamente aconteceu. Não se sabe se o autor incumpriu, de facto, as suas obrigações - a entrega das 4ª, 5ª e 11ª parcela de veículos militares. Pode-se, contudo, concluir que na falta de prova de interpelação admonitória por parte do Ministério da Defesa, e dada a essencialidade desta para que se verifique o incumprimento definitivo da prestação, não pode o mesmo servir de fundamento ao acto de resolução. Reitera-se, assim, que a simples mora não constitui fundamento de acto resolutivo.

VII. Quanto à possibilidade de resolver o contrato com base na alteração de circunstâncias, exige-se que esta atinja, de forma anormal e imprevisível, as condições que levaram as partes a tomar a decisão de contratar. Entende-se, a este propósito,  que a alteração de circunstâncias se reconduz à superveniência, em fase de execução, de circunstâncias independentes da vontade dos contraentes e, por isso, imprevisíveis. Neste sentido, tais alterações, com referência ao momento da conclusão do contrato, transcendem o risco ordinário do negócio, criando um estado de imprevisão.  Além disto, exige-se também que o contraente que invoca a alteração não tivesse contratado se, no momento da celebração do contrato, tivesse conhecimento dos factos supervenientes relevantes.
De acordo com o art. 312º, alínea a) (ex vi 335º/1), é necessário, em primeiro lugar, que a alteração seja anormal. Em abstracto, e recorrendo a um juízo de normalidade, o facto de Portugal estar sujeito a fortes restrições orçamentais impostas pelo Memorando da Troika, é uma circunstância anormal.
Contudo, isto não basta, sendo também necessário que o ambiente circunstancial do contrato sofra uma alteração imprevisível (diferentemente do que sucede no regime previsto no Código Civil, em que não exige que a alteração seja imprevisível). Neste pressuposto, mais dúvidas se levantam. De facto, saber se a necessidade de recorrer a um resgate financeiro em 2011 não era previsível cria muitas dificuldades.  No entanto, o Ministério Público considera que esta alteração superveniente ainda poderá ser considerada como imprevisível. De facto, aquando da celebração do contrato, a situação económica e financeira do país, destarte ser já preocupante, não fazia adivinhar o recurso à ajuda do FMI, BCE e Comissão Europeia (Troika). Lembre-se, a este respeito, as declarações, quer dos nossos governantes, quer de governantes de instituições internacionais, acerca do carácter passageiro da crise e da rápida e forte recuperação económica que se avizinhava.
A possibilidade de recurso ao instituto da alteração das circunstâncias encontra-se limitada pelo seguinte: embora tenha havido uma alteração anormal e imprevisível (que se admite ser discutível), o equilíbrio contratual não foi afectado por esta. Significa isto que a prestação do contraente público não se tornou excessivamente onerosa em relação à contraprestação. A falta de onerosidade excessiva, não sendo o equilíbrio do contrato posto em causa, impossibilita, desde logo, o recurso à figura da resolução por alteração das circunstâncias prevista no CCP. “A alteração das circunstâncias (…) deriva de uma causa objectiva, externa às partes, imprevisível, que torna a manutenção da relação contratual insustentável nos termos inicialmente previstos devido à excessiva onerosidade que provoca para o adjudicatário” (Carla Amado Gomes, A conformação da relação contratual no Código dos Contratos Públicos”, 2008, p. 16).

VIII. No que concerne à possibilidade de a resolução do contrato se fundar em razões de interesse público, cumpre verificar do preenchimento dos pressupostos enunciados no artigo 334º/1 CCP. De acordo com este preceito, exige-se desde logo, uma fundamentação material, o pagamento da justa indemnização e que esta via constitua a ultima ratio de tutela do interesse público. O fundamento da possibilidade de resolução por interesse público passa pela necessidade de “evitar males maiores do que os já produzidos pela dificuldade ou impossibilidade de cumprimento do pactuado” (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, I, 10ª edição, 1980, pp. 637-638).
Relativamente à necessidade de fundamentação, é imperativo realçar que este dever de fundamentação é essencialmente material. Daqui se retira que não basta a mera alegação de um fundamento, é antes necessário que este fundamento esteja concretamente identificado e conexo, quer com o objecto do contrato, quer com as necessidades de interesse público.
Da falta da devida fundamentação, redunda a invalidade do acto, ainda que distintamente entendida na doutrina, como bem refere a Autora. Por um lado, entende-se que, sendo o dever de fundamentação do acto um requisito meramente procedimental, não configurando um direito, liberdade ou garantia (ou direito de natureza análoga), não se pode subsumir a nenhuma alínea do 133º/2 do Código de Procedimento Administrativo (CPA), e logo, não se poderá cominar o acto com o vício de nulidade (133º/1 CPA), mas tão-só com a anulabilidade (135º CPA). “O mesmo se diga dos direitos subjectivos públicos de carácter administrativo (…) cuja violação é, quanto a nós, geradora de mera anulabilidade por não estar em causa a protecção da dignidade da pessoa humana” (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2001, pp. 412-413). Numa perspectiva distinta, entende-se que o dever de fundamentação configura um verdadeiro direito fundamental dos administrados, pois permite a sua defesa em relação ao exercício dos poderes públicos (Marcelo Rebelo de Sousa/ André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, III, 2ª edição, 2009, p. 172).  Neste entendimento, a falta de fundamentação deve ser enquadrada na alínea d) do artigo 133º/2 do CPA, sendo o acto ferido com o vício da nulidade (134º CPA).
Entende assim o Ministério Público que, ainda que se encontrassem preenchidos os demais pressupostos atinentes à possibilidade de resolução por razões de interesse público, a falta de fundamentação material redundaria na invalidade do acto.

Apesar de o réu não o ter alegado expressamente, o acto de resolução do contrato, constante de despacho por si emitido, parece invocar razões de interesse público, nomeadamente as difíceis condições económico-financeiras em que Portugal se encontra. O interesse público, «há-de, em primeiro lugar, tratar-se naturalmente de casos imperiosos, seja pela dimensão dos eventos, seja pela importância do interesse público envolvido, não podendo servir como tal nem o comportamento do contratante particular, nem as desvantagens económicas (para a Administração) do contrato». (Pedro Gonçalves, O Contrato Administrativo, 2003, p. 133). Parece-nos, deste modo, necessário analisar de que forma estas circunstâncias interferiram para a modificação do interesse público relevante¸ i.e., as necessidades da colectividade.
 Aquando da celebração do contrato, a conjuntura económica do país não obrigava a preterir as políticas de defesa nacional para a consolidação das contas públicas. Actualmente, dadas as exigentes restrições orçamentais, impostas pelo Memorando de Entendimento, haveria que reconsiderar a preponderância de tais interesses. De facto, a necessidade de assegurar a defesa nacional, enquanto imperativo constitucional, estará sempre condicionada às efectivas possibilidades económicas de um país, devendo ceder perante a impossibilidade de manutenção económica. Cabe ao Ministro da Defesa explicitar quais os fundamentos (a verdadeira situação de facto, a nível económico e financeiro, devidamente comprovada) que exigem a preponderância da manutenção de uma condição financeira sustentável face à garantia de meios de defesa nacional, sem os quais não se pode concluir pelo preenchimento do pressuposto de interesse público em causa.

IX. Em suma:
- Não poderia haver lugar a resolução com fundamento em incumprimento contratual já que não se provou o incumprimento definitivo (vide ponto VI);
- não se poderia ter adoptado a resolução com base em alteração das circunstâncias, já que esta, a existir uma situação anormal e imprevisível, não afectou o equilíbrio do contrato (vide ponto VII);
- por fim, no que concerne à possibilidade de resolução unilateral por razões interesse público, não entende o Ministério Público que os fundamentos desta estejam preenchidos, já que, quer quanto à fundamentação, quer quanto à efectiva situação de interesse público relevante, o réu não alegou os factos que as provam (vide ponto VIII).

Tendo em conta o acima exposto, considera o Ministério Público que a acção especial de impugnação do acto administrativo, i.e., da resolução, deve ser declarada procedente. Decorrerá dessa procedência, o restabelecimento da situação existente no período anterior à emissão do acto de resolução e a condenação do réu no pagamento da respectiva indemnização, caso se provem todos os factos constitutivos do direito à indemnização.



[1] Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades da Política Económica celebrado entre a República Portuguesa e o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional no quadro do Programa de Auxílio Financeiro a Portugal.



Daniel Bogalheiro
Isabel Ferreira
Joana Martins
Joel Manuel
Mafalda Melim
Márcia Farias

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