Com a reforma do
Contencioso Administrativo traduzida num novo modelo de justiça administrativa
consagrado na ideia de igualdade de armas entre cidadãos e autoridades
administrativas e na disposição de formas processuais que permitem o acesso aos
tribunais, previu-se, entre tantas outras alterações e criações, a intimação para a protecção de direitos,
liberdades e garantias, dentro dos processos urgentes, que cresceu e deu
frutos importantes para esta reforma, nos artigos 36º/1-d) e 109º e ss. do
CPTA. De todo o modo, apesar de enquadrada nas mudanças de 2002/2003 do
contencioso administrativo, cabe referir que esta já era de certa forma
prevista num meio processual acessório designado por "intimação para um
comportamento", apesar de anteriormente apenas poder ser usada contra
particulares e concessionários. Posteriormente, o CPTA previu ainda uma
protecção dos direitos no art. 114º/1 onde o particular interessado poderia
pedir a decretação provisória da providência. De todo o modo, no direito de
hoje verificamos que a intimação é um meio processual autónomo e não uma
modalidade urgentíssima das providências cautelares, assim como o seu âmbito
abrange todos os direitos, liberdades e garantias.
Aferindo a sua utilidade, a ratio legis desta tutela prende-se com a
necessidade de garantir a protecção dos direitos fundamentais, traduzidos num
direito a um processo equitativo e a um acesso à justiça traduzido num processo
célere e sem dilações indevidas, perante um tribunal imparcial e independente.
O Professor Vasco Pereira da Silva
afirma que "os direitos fundamentais
consubstanciam-se em regras substantivas, procedimentais e processuais, daí que
a sua concretização não seja possível sem os meios adequados de forma a
assegurar a sua tutela plena e efectiva". Tendo em conta que os
artigos 1º e 2º da CRP proclamam a República Portuguesa enquanto um Estado de
direito democrático baseado na dignidade da pessoa humana, no respeito e na
garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, estes têm que
aplicar-se directamente e de forma eficaz. Face a eles, a Administração, deve
agir no sentido de os proteger (minimamente), abstendo-se de provocar qualquer
lesão aos direitos, liberdades e garantias dos particulares - veja-se o art.
266º CRP que traduz este dever.
Assim, o objecto da intimação para a
protecção de direitos, liberdades e garantias terá de incidir sobre a conduta
positiva ou negativa da administração ou de particulares, designadamente de
entidades que exercem poderes de autoridade, independentemente do facto de esta
conduta lesiva já se ter concretizado ou ser apenas potencial (veja-se o artigo
109º/1 e 2 CPTA). Porém, apesar de ser claro o objectivo da intimação, quanto
ao definir sobre o que deve servir de base ao seu objecto, surgiram várias
teorias[i]
quanto à sua delimitação, tendo prevalecido na maioria da doutrina,
nomeadamente entre os Professores Mário Aroso de Almeida, Vieira de Andrade,
Jorge Miranda, entre outros, a ideia de que o seu objecto se irá estender a todos os direitos, liberdades e garantias
(plasmados na Parte I, Título II da CRP) e
assim como a todos os direitos de natureza análoga, não incluindo tantos
outros direitos, pois argumentam que se o legislador não distinguiu os direitos
dentro daquela categoria, também não há-de ser o intérprete-aplicador a fazê-lo
e a abranger o que não se quis. Assim, e com base no exposto, nesta intimação
pedir-se-à ao juiz que tome uma decisão de mérito e imponha a adopção de uma
conduta indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito,
liberdade e/ou garantia.
Referindo agora os pressupostos
relativos ao processo de intimação, além de estes terem de revestir um caracter
urgente que está subjacente à natureza dos bens jurídicos que se pretende
proteger, defende-se que esta só pode ser requerida quando a emissão de uma
decisão de mérito se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo
útil, de um direito, liberdade e garantia, por não ser possível, ou suficiente,
o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no
131º CPTA (cf. 109º/1), tendo então que assumir um carácter indispensável no
seu uso, caso contrário, perder-se-à a tutela do direito. Exige-se também que
se faça prova tanto da insuficiência do decretamento provisório como da inexistência
de outro meio processual especial de defesa do direito, liberdade e garantia
ameaçado.
Esmiuçando um pouco os pressupostos
processuais, quanto à subsidiariedade da intimação esta exige que só possa
socorrer-se a este meio de tutela urgente quando estritamente necessário pois
não é um meio que funciona automaticamente - se tal acontecesse, haveria uma
frequente transformação de processos urgentes em principais, algo que, além de
aumentar consideravelmente o volume de processos nos tribunais, iria também
diminuir a tramitação processual, algo não pretendido. Portanto, entende-se que
a intimação só poderá ser usada apenas e exclusivamente quando os outros meios
de tutela do contencioso administrativo não possam dar resposta à necessidade
de protecção efectiva de um direito, liberdade ou garantia. Contudo, não deve
interpretar-se a intimação enquanto membro do processo cautelar, tal seria
incorrecto, pois aquelas são processos autónomos que permitem decisões
definitivas formando caso julgado material enquanto estas, além de provisórias,
são instrumentais e acessórias ao processo.
Atendendo à indispensabilidade da
intimação para assegurar o exercício em tempo útil de um direito, liberdade ou
garantia, tal como se retira do CPTA e como já foi referido, a intimação é um
instrumento que o juiz deverá dosear consoante a sua urgência, portanto terá
que ser avaliado caso a caso, provando, o particular que a intimação visa
garantir o exercício do seu direito - o que implicará uma ponderação de
interesses e valores, públicos e privados (consideração retirada implicitamente
da letra do 110º/3 CPTA)
É imposto ao legislador um grande
rigor e exigência na interpretação e verificação dos pressupostos enunciados,
bem como uma grande prudência naquela avaliação, a modo que se possa verificar
que estamos perante um poder de exercício excepcional, pois caso não se
preencham os pressupostos, deverá decidir-se pela absolvição da instância ou
convolação. Apoiando a doutrina - como Mário Aroso de Almeida, Carla Amado Gomes,
Sofia David, Catarina Santos Botelho - e jurisprudência maioritária, entende-se
que caso o juiz negue o recurso à intimação por força do artigo 131º, então ele
deve proceder à convolação do processo num processo cautelar, à luz do
princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos, não dando, portanto,
lugar à absolvição da instância.
Sabendo então em que condições é que
a intimação pode ser suscitada, cabe atender à legitimidade das partes para o fazerem.
Admitindo, ao abrigo do 109º e 131º do CPTA, que a intimação pode ser requerida
a qualquer momento sempre que o decretamento provisório de uma providência
cautelar não se mostre possível ou suficiente para assegurar, em tempo útil, um
direito, liberdade e garanto, estes pedidos podem ser apresentados por quem
alegue e prove ter necessidade de assegurar o exercício de direitos, liberdades
e garantias, sendo parte na relação material controvertida, ou ainda pelo
Ministério Público no exercício da acção popular, ao abrigo dos artigos 9º;
109º e 131º/1 do CPTA, do 219º/1 CRP). Quanto à legitimidade passiva, este meio
de tutela urgente deve ser apresentado contra a pessoa colectiva pública ou
contra o Ministério onde o órgão a quem se imputa a conduta lesiva está
inserido. Prevê-se ainda a possibilidade de ser intentada contra particulares
(p.ex. concessionários) contra quem se pretende que seja dirigida a intimação
(cf. Artigos 10º; 109º; 131º/1 do CPTA). Fora estes entes, cuja conduta lesou
direitos, liberdades e garantias de outrem, a intimação deve ainda se proposta
perante os contra-interessados, isto é, contra quem tenha interesses
contrapostos aos do autor ao abrigo do art. 10º/1; 57º/2 e 68/2º CPTA.
Posto isto, fazendo agora uma
brevíssima referência jurisprudencial, esta normalmente tem vindo a alargar o
âmbito a todo e qualquer direito, liberdade e garantia e igualmente aos
direitos de natureza análoga (ex vi
art. 17ºCRP), de todo o modo, também já houve pronúncia negativa por parte do
Tribunal Central Administrativo Norte (Proc nº 00496/04.1BECBR) no qual veio
dizer que este meio processual estava apenas previsto para a "concretização da tutela efectiva e em tempo
útil de direitos, liberdades e garantias". De todo o modo, após vários
casos de concordância e discordância quanto aos direitos análogos, vem o
Supremo Tribunal Administrativo no acórdão 18/02/2010 reforçar o entendimento,
optando pelo respeito dos direitos fundamentais assim como os direitos a ele
analogados. Contudo, refere ainda que estes não são destinados para proteger
direitos subjectivos de menor premência, como por vezes sucedia, mas sim,
quando demonstrado que mais nenhuma hipótese surge para tutelar a situação.
Por fim, após a apreciação de todo o
caso, o juiz pronuncia-se pelo mérito e concretiza uma intimação, uma ordem dirigida
à Administração, ou a particulares, para que adoptem uma conduta indispensável
para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade e garantia,
determinando o comportamento a que o destinatário é intimidado (e quando
necessário, poderá ainda indicar um prazo para o cumprimento). O seu
incumprimento sujeita o faltoso a uma sanção pecuniária compulsória, a fixar
pelo juiz na decisão de intimação ou em despacho posterior, por força do art.
169º. Segundo Vieira de Andrade, não é admissível "a invocação de causa legítima de inexecução, isto é, de
impossibilidade ou de grave lesão para o interesse público decorrente do
cumprimento da sentença", indo contra o disposto dos artigos 3º/2 e
169º do CPTA que prevêm a ponderação das eventuais justificações para o
incumprimento.
É dispensado recurso pois,
conforme os arts 157º e seguintes do CPTA, o juiz, na decisão, determina logo
os comportamentos a que o destinatário é obrigado a realizar. Tal como refere
Mário Aroso de Almeida, como estamos perante uma situação que requer urgência,
no proferimento de sentença, esta será constitutiva e destinada a produzir os
mesmos efeitos do acto devido e, portanto, a substituir o acto ilegalmente
recusado ou omitido.
De todo o modo, conclui-se que, na
realidade, a intimação vai estar sempre dependente do que os juízes queiram
fazer dela, pois a urgência e a necessidade de recorrer a este meio e
conseguir, efectivamente, fazer proveito dele, estará sempre dependente da
apreciação do caso concreto.
Inês
Mendes - nº19639
[i]
As outras teorias:
a) o objecto apenas incide
sobre direitos, liberdades e garantias pessoais previstos na Parte I do Título
II (arts. 24º a 47º CRP);
b) o objecto abrange os
direitos, liberdades e garantias pessoais acima mencionados, assim como os
direitos fundamentais de natureza análoga a estes;
c) todos os direitos,
liberdades e garantias plasmados na parte I, título II (arts. 24º a 57º CRP)
poderão fazer valer a intimação;
e) pode fazer-se valer face
a todos os direitos, liberdades e garantias ou direitos análogos a estes, quer
sejam direitos económicos, sociais e culturais. Esta é a teoria defendida pelo
Professor Vasco Pereira da Silva, defendendo a extensão do âmbito do 109º aos
direitos de solidariedade, como p.ex., ao ambiente, potenciando ao máximo da
protecção dos direitos.
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