I.
A existência – ou, melhor dizendo, exigência – de um regime de medidas
cautelares no Contencioso Administrativo remonta à revisão constitucional de
1997 quando o legislador constituinte as impôs de forma expressa como meio necessário
à garantia de tutela jurisdicional efectiva dos particulares[1].
Com efeito, o artigo 268.º/4, que mantém até hoje a redacção dessa revisão,
reza: “É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus
direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente (…) a
adopção de medidas cautelares adequadas.” O legislador ordinário fora assim
simultaneamente habilitado e interpelado a construir um novo regime de Processo
Administrativo – a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais[2]
fora concebida com uma solução meramente transitória[3]
- que concretizasse plenamente a norma programática do artigo 268.º/4 CRP e,
dessa forma, dotasse os particulares de um conjunto de providências cautelares
adequadas a defender as suas posições jurídicas perante a Administração: dever
que só viria a ser cumprido com a entrada em vigor do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos em 2002[4].
II.
Apesar de já existir, anteriormente, o instituto de suspensão de eficácia de
actos administrativos e a intimação para um comportamento[5]
(embora esta última apenas pudesse ser dirigida contra outro particular e não
contra a Administração) e tivesse já sido reconhecido um princípio de concessão
por parte dos tribunais administrativos de providências cautelares não
especificadas com base numa aplicação subsidiária do Código de Processo Civil[6],
o certo é que até ao advento do CPTA não existia um regime de tutela cautelar
claro e definido que se mostrasse adequado às diversas pretensões que os
particulares pudessem levar a juízo. Por isso, só com o seu artigo 112.º é que
é possível afirmar o cumprimento da norma do artigo 268.º/4 CRP no que respeita à existência de medidas cautelares adequadas à defesa do leque de posições
jurídicas dos particulares – muito em parte devido à cláusula aberta do 112.º/1
que permite o requerimento de providências cautelares antecipatórias ou
conservatórias “que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a
proferir neste processo”. Este âmbito pode então compreender as providências
enumeradas no número 2, as providências especificadas no Código de Processo
Civil e quaisquer providências não especificadas que obedeçam ao requisito da
adequação à utilidade da sentença do número 1.
III.
A tutela cautelar tem como função, também no Contencioso Administrativo e como
já se pode entrever, garantir que a sentença ou decisão final do litígio não
perde a sua utilidade através de uma composição provisória dos interesses em
jogo – eventualmente dando prevalência transitória às pretensões de uma das
partes, sendo que essa prevalência pode manter-se ou desaparecer com a decisão
final. Ela assume por isso uma importância particular no Processo
Administrativo - importância que é redobrada com a constatação de que grande
parte da actividade dos tribunais administrativos se cinge à resolução de
questões relacionadas com providências cautelares. Neste panorama afigura-se
bastante útil compreender os requisitos de adopção de medidas cautelares
presentes no artigo 120.º e que parecem coincidir com os das providências
cautelares no processo civil - o fumus
boni iuris ou “aparência de bom direito”[7],
o periculum in mora e a ponderação de
interesses: sendo que esta, pela sua particularidade e pelas diversas questões
que suscita será alvo de uma análise detida neste texto.
IV.
Efectivamente, no artigo 120.º/2 parece ser exigido ao decretamento de
providências cautelares no Contencioso Administrativo um requisito "extra" relativamente
às providências do processo civil: este será recusado se da ponderação dos
interesses públicos e privados em presença resulte que os danos advenientes
desse decretamento sejam superiores aos que poderiam surgir da sua recusa. Este
requisito é excluído, pela sua própria letra, das situações de evidência da
procedência da pretensão da alínea a) do 120.º/1. Cumpre, em primeiro lugar,
saber em que medida é que esta condição da ponderação de interesses é diferente
da exigência plasmada no artigo 387.º/2 CPC, e desde logo as semelhanças são
notórias: estatui este preceito que “a providência pode, não obstante, ser
recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido
exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.”
Partindo da consideração que as normas são semelhantes e possuem a mesma ratio então o artigo 120.º/2 não
apresentaria qualquer especificidade própria do Contencioso Administrativo – seria
apenas uma manifestação do influxo do princípio da proporcionalidade[8]
na adopção de providências cautelares. Mas desde logo é possível apontar uma
diferença quiçá importante na proporcionalidade ou equilíbrio que são exigidos
entre os danos resultantes da concessão para o requerido e os prejuízos que o
requerente pretende evitar: com efeito o artigo 387.º/2 CPC permite a adopção
da providência desde o prejuízo dela resultante para o requerido não exceda consideravelmente o dano a que o
requerente pretende obviar; enquanto que o artigo 120.º/2 apresenta um padrão mais
exigente ao recusar a concessão da medida se os efeitos negativos resultantes
para o requerido com ela apenas forem
superiores aos prejuízos do requerente sem o seu decretamento[9].
Outra diferença significativa é que apesar de ambas as normas implicarem um
juízo de prognose concreto[10]
apenas o 120.º/2 fala em “ponderação de interesses públicos e privados” – o que,
prima facie, levaria a concluir por
uma diferença qualitativa entre os dois critérios de atribuição de providências
cautelares.
V.
Todavia, é conveniente ter em conta que esta referência no artigo 120.º/2 parece
partir da pré-compreensão de que na discussão sobre a concessão ou não de uma
providência cautelar - ou melhor ainda, em qualquer acção que decorra nos
tribunais administrativos - se opõe um particular (ou mais) contra a
Administração[11],
quando hoje é sobejamente sabido que assim não será sempre: com efeito, é a
própria lei que admite a existência quer de litígios entre pessoas colectivas
públicas e de litígios interorgânicos[12]
nos artigos 4.º/1 j) ETAF e 10.º/6 CPTA, quer de acções nos
tribunais administrativos em que ambas as partes sejam particulares – o artigo
4.º/1 i) admite essa hipótese. Assim, estes seriam casos em que a ponderação de
interesses teria de ser feita considerando interesses públicos contrapostos a
interesses públicos e interesses privados em colisão com outros interesses
privados – o que no fundo não parece diferenciar este juízo de prognose no
âmbito do 120.º/2 relativamente ao do 387.º/2 CPC. Outro argumento no sentido
da semelhança entre ambas as normas é o da similitude das suas redacções e da inserção
nos respectivos artigos: na sequência lógica quer do 120.º quer do 387.º CPC o
número 1 estabelece os requisitos do fumus
boni iuris e periculum in mora;
preenchidos estes pressupostos, no entanto, no número 2 estabelece-se uma
cláusula de salvaguarda de recusa[13]
da providência cautelar se se entender que a atribuição da mesma resultaria em
danos desproporcionais para o requerido relativamente aos que ela pretende
evitar para o requerente. Quanto à diferente medida dos danos nos dois artigos
é de salientar que essa diferença é apenas de grau: nas providências do
contencioso administrativo exige-se, como já foi referido, que o prejuízo a que o requerente pretende
obviar não seja superior ao dano provocado no requerido com o decretamento; já
nas providências do processo civil a exigência é mais leve, apenas podendo ser
recusada a concessão da medida se o prejuízo sofrido pelo requerido exceder consideravelmente
o dano que o requerente pretende evitar com a providência.
VI.
Examinando o problema deste prisma a conclusão possível é a de que a ponderação
de interesses prevista no artigo 120.º/2 como requisito para as providências
cautelares no Contencioso Administrativo não apresenta especificidades
significativas relativamente à cláusula de recusa de adopção de uma providência
cautelar no processo civil constante do artigo 387.º/2 CPC: no fundo a
teleologia de ambas é evitar o decretamento de medidas cautelares
desproporcionais que dessa forma coloquem em causa as pretensões do réu e uma
possível decisão definitiva a seu favor – já que as providências consistem em
composições provisórias do litígio que devem por isso salvaguardar o efeito
útil de uma sentença final em qualquer sentido. Contudo, pode-se apontar uma
característica particular da ponderação de interesses do 120.º/2 que não se
encontra no processo civil: a possível existência de contra-interessados no
Processo Administrativo pelo artigo 10.º/1 obriga a que, estando presentes estes “titulares
de interesses contrapostos aos do autor” na acção, esses interesses sejam sempre
considerados aquando do estabelecimento de uma providência cautelar[14].
Isto significa que se os interesses dos contra-interessados são, como o próprio
nome diz, contrários aos do autor e por isso alinhados com os do réu, então a
providência cautelar só poderá ser concedida se os prejuízos sofridos pelo réu em
conjunção com os dos contra-interessados em juízo não forem superiores ou não
se sobrepuserem aos danos do autor com a não adopção da providência.
João Tilly
[1]
Sobre a importância e
consequências desta revisão constitucional de 1997 para o Contencioso
Administrativo vide Vasco Pereira da Silva, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pp. 211 e ss, e Sérvulo
Correia, Direito do Contencioso
Administrativo I, pp. 574 e ss.
[2]
Aprovada pelo Decreto-Lei n.º
267/85 de 16 de Julho.
[3]
Diogo Freitas do Amaral e
Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da
Reforma do Contencioso Administrativo, pág. 16.
[4]
Pela Lei n.º 15/2002 de 22 de
Fevereiro.
[5]
Sobre o regime de intimações
vigente com a LPTA vide Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Intimações in Cadernos de
Justiça Administrativa N.º 16, Julho/Agosto 1999.
[6]
Mas que na prática teve uma
aplicação residual - Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, ob.
cit., pp. 62 e ss.
[7]
Sendo que na verdade este
requisito assume três configurações distintas: no artigo 120.º/1 a) não se
trata de uma mera aparência mas sim de uma verdadeira “evidência de bom direito”
cuja força leva a dispensar do juízo de adopção da providência a ponderação de
interesses e aparentemente o periculum in
mora (sendo que este requisito apesar de não exigido pela letra é uma
constante em qualquer decisão de tutela cautelar e como tal nem aqui deve ser
dispensado); a alínea b), referindo-se ao decretamento de providências
conservatórias, exige não que a pretensão aparente ser procedente mas que não
seja manifestamente improcedente – um critério de menor exigência que a doutrina
apelida de fumus non mali iuris; por
fim a alínea c) do 120.º/1 quanto às providências antecipatórias exige o
critério normal de aparência de bom direito - ou seja que a pretensão apresente
alguma probabilidade de procedência.
[8]
Na dimensão de equilíbrio,
segundo ensina Vieira de Andrade, Justiça
Administrativa, pág. 311.
[9]
A medida exigida no 120.º/2 parece
já não implicar considerações de proporcionalidade: a questão seria saber apenas
qual dos danos seria o mais avultado. Mas é nesta consideração de apurar o dano
mais relevante que o princípio da proporcionalidade releva – pois dificilmente
os danos em questão terão a mesma natureza.
[10]
Mário Aroso de Almeida fala
num “juízo de valor relativo” – Manual de Processo Administrativo, pág. 479. No
mesmo sentido Viera de Andrade (…).
[11]
Todavia esta continua a ser a
situação paradigmática no Contencioso Administrativo, como aponta Vieira de
Andrade, ob. cit., pág. 311.
[12]
Sobre o tema vide Pedro
Gonçalves, A justiciabilidade dos
litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública in Cadernos de Justiça Administrativa N.º
35, Setembro/Outubro de 2002.
[13]
Do mesmo modo Mário Aroso de
Almeida, ob. cit., pp. 479 e 480.
[14] Assim Vieira de Andrade, ob. cit.,
pp. 311-313.
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