domingo, 16 de dezembro de 2012

Ponderando a ponderação de interesses na tutela cautelar: algumas reflexões sobre o artigo 120.º/2 CPTA



I. A existência – ou, melhor dizendo, exigência – de um regime de medidas cautelares no Contencioso Administrativo remonta à revisão constitucional de 1997 quando o legislador constituinte as impôs de forma expressa como meio necessário à garantia de tutela jurisdicional efectiva dos particulares[1]. Com efeito, o artigo 268.º/4, que mantém até hoje a redacção dessa revisão, reza: “É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente (…) a adopção de medidas cautelares adequadas.” O legislador ordinário fora assim simultaneamente habilitado e interpelado a construir um novo regime de Processo Administrativo – a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais[2] fora concebida com uma solução meramente transitória[3] - que concretizasse plenamente a norma programática do artigo 268.º/4 CRP e, dessa forma, dotasse os particulares de um conjunto de providências cautelares adequadas a defender as suas posições jurídicas perante a Administração: dever que só viria a ser cumprido com a entrada em vigor do Código de Processo nos Tribunais Administrativos em 2002[4].

II. Apesar de já existir, anteriormente, o instituto de suspensão de eficácia de actos administrativos e a intimação para um comportamento[5] (embora esta última apenas pudesse ser dirigida contra outro particular e não contra a Administração) e tivesse já sido reconhecido um princípio de concessão por parte dos tribunais administrativos de providências cautelares não especificadas com base numa aplicação subsidiária do Código de Processo Civil[6], o certo é que até ao advento do CPTA não existia um regime de tutela cautelar claro e definido que se mostrasse adequado às diversas pretensões que os particulares pudessem levar a juízo. Por isso, só com o seu artigo 112.º é que é possível afirmar o cumprimento da norma do artigo 268.º/4 CRP no que respeita à existência de medidas cautelares adequadas à defesa do leque de posições jurídicas dos particulares – muito em parte devido à cláusula aberta do 112.º/1 que permite o requerimento de providências cautelares antecipatórias ou conservatórias “que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir neste processo”. Este âmbito pode então compreender as providências enumeradas no número 2, as providências especificadas no Código de Processo Civil e quaisquer providências não especificadas que obedeçam ao requisito da adequação à utilidade da sentença do número 1.

III. A tutela cautelar tem como função, também no Contencioso Administrativo e como já se pode entrever, garantir que a sentença ou decisão final do litígio não perde a sua utilidade através de uma composição provisória dos interesses em jogo – eventualmente dando prevalência transitória às pretensões de uma das partes, sendo que essa prevalência pode manter-se ou desaparecer com a decisão final. Ela assume por isso uma importância particular no Processo Administrativo - importância que é redobrada com a constatação de que grande parte da actividade dos tribunais administrativos se cinge à resolução de questões relacionadas com providências cautelares. Neste panorama afigura-se bastante útil compreender os requisitos de adopção de medidas cautelares presentes no artigo 120.º e que parecem coincidir com os das providências cautelares no processo civil - o fumus boni iuris ou “aparência de bom direito”[7], o periculum in mora e a ponderação de interesses: sendo que esta, pela sua particularidade e pelas diversas questões que suscita será alvo de uma análise detida neste texto.

IV. Efectivamente, no artigo 120.º/2 parece ser exigido ao decretamento de providências cautelares no Contencioso Administrativo um requisito "extra" relativamente às providências do processo civil: este será recusado se da ponderação dos interesses públicos e privados em presença resulte que os danos advenientes desse decretamento sejam superiores aos que poderiam surgir da sua recusa. Este requisito é excluído, pela sua própria letra, das situações de evidência da procedência da pretensão da alínea a) do 120.º/1. Cumpre, em primeiro lugar, saber em que medida é que esta condição da ponderação de interesses é diferente da exigência plasmada no artigo 387.º/2 CPC, e desde logo as semelhanças são notórias: estatui este preceito que “a providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.” Partindo da consideração que as normas são semelhantes e possuem a mesma ratio então o artigo 120.º/2 não apresentaria qualquer especificidade própria do Contencioso Administrativo – seria apenas uma manifestação do influxo do princípio da proporcionalidade[8] na adopção de providências cautelares. Mas desde logo é possível apontar uma diferença quiçá importante na proporcionalidade ou equilíbrio que são exigidos entre os danos resultantes da concessão para o requerido e os prejuízos que o requerente pretende evitar: com efeito o artigo 387.º/2 CPC permite a adopção da providência desde o prejuízo dela resultante para o requerido não exceda consideravelmente o dano a que o requerente pretende obviar; enquanto que o artigo 120.º/2 apresenta um padrão mais exigente ao recusar a concessão da medida se os efeitos negativos resultantes para o requerido com ela apenas forem superiores aos prejuízos do requerente sem o seu decretamento[9]. Outra diferença significativa é que apesar de ambas as normas implicarem um juízo de prognose concreto[10] apenas o 120.º/2 fala em “ponderação de interesses públicos e privados” – o que, prima facie, levaria a concluir por uma diferença qualitativa entre os dois critérios de atribuição de providências cautelares.

V. Todavia, é conveniente ter em conta que esta referência no artigo 120.º/2 parece partir da pré-compreensão de que na discussão sobre a concessão ou não de uma providência cautelar - ou melhor ainda, em qualquer acção que decorra nos tribunais administrativos - se opõe um particular (ou mais) contra a Administração[11], quando hoje é sobejamente sabido que assim não será sempre: com efeito, é a própria lei que admite a existência quer de litígios entre pessoas colectivas públicas e de litígios interorgânicos[12] nos artigos 4.º/1 j) ETAF e 10.º/6 CPTA, quer de acções nos tribunais administrativos em que ambas as partes sejam particulares – o artigo 4.º/1 i) admite essa hipótese. Assim, estes seriam casos em que a ponderação de interesses teria de ser feita considerando interesses públicos contrapostos a interesses públicos e interesses privados em colisão com outros interesses privados – o que no fundo não parece diferenciar este juízo de prognose no âmbito do 120.º/2 relativamente ao do 387.º/2 CPC. Outro argumento no sentido da semelhança entre ambas as normas é o da similitude das suas redacções e da inserção nos respectivos artigos: na sequência lógica quer do 120.º quer do 387.º CPC o número 1 estabelece os requisitos do fumus boni iuris e periculum in mora; preenchidos estes pressupostos, no entanto, no número 2 estabelece-se uma cláusula de salvaguarda de recusa[13] da providência cautelar se se entender que a atribuição da mesma resultaria em danos desproporcionais para o requerido relativamente aos que ela pretende evitar para o requerente. Quanto à diferente medida dos danos nos dois artigos é de salientar que essa diferença é apenas de grau: nas providências do contencioso administrativo exige-se, como já foi referido, que o prejuízo a que o requerente pretende obviar não seja superior ao dano provocado no requerido com o decretamento; já nas providências do processo civil a exigência é mais leve, apenas podendo ser recusada a concessão da medida se o prejuízo sofrido pelo requerido exceder consideravelmente o dano que o requerente pretende evitar com a providência.

VI. Examinando o problema deste prisma a conclusão possível é a de que a ponderação de interesses prevista no artigo 120.º/2 como requisito para as providências cautelares no Contencioso Administrativo não apresenta especificidades significativas relativamente à cláusula de recusa de adopção de uma providência cautelar no processo civil constante do artigo 387.º/2 CPC: no fundo a teleologia de ambas é evitar o decretamento de medidas cautelares desproporcionais que dessa forma coloquem em causa as pretensões do réu e uma possível decisão definitiva a seu favor – já que as providências consistem em composições provisórias do litígio que devem por isso salvaguardar o efeito útil de uma sentença final em qualquer sentido. Contudo, pode-se apontar uma característica particular da ponderação de interesses do 120.º/2 que não se encontra no processo civil: a possível existência de contra-interessados no Processo Administrativo pelo artigo 10.º/1 obriga a que, estando presentes estes “titulares de interesses contrapostos aos do autor” na acção, esses interesses sejam sempre considerados aquando do estabelecimento de uma providência cautelar[14]. Isto significa que se os interesses dos contra-interessados são, como o próprio nome diz, contrários aos do autor e por isso alinhados com os do réu, então a providência cautelar só poderá ser concedida se os prejuízos sofridos pelo réu em conjunção com os dos contra-interessados em juízo não forem superiores ou não se sobrepuserem aos danos do autor com a não adopção da providência.


João Tilly



[1] Sobre a importância e consequências desta revisão constitucional de 1997 para o Contencioso Administrativo vide Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pp. 211 e ss, e Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo I, pp. 574 e ss.
[2] Aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85 de 16 de Julho.
[3] Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, pág. 16.
[4] Pela Lei n.º 15/2002 de 22 de Fevereiro.
[5] Sobre o regime de intimações vigente com a LPTA vide Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Intimações in Cadernos de Justiça Administrativa N.º 16, Julho/Agosto 1999.
[6] Mas que na prática teve uma aplicação residual - Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, ob. cit., pp. 62 e ss.
[7] Sendo que na verdade este requisito assume três configurações distintas: no artigo 120.º/1 a) não se trata de uma mera aparência mas sim de uma verdadeira “evidência de bom direito” cuja força leva a dispensar do juízo de adopção da providência a ponderação de interesses e aparentemente o periculum in mora (sendo que este requisito apesar de não exigido pela letra é uma constante em qualquer decisão de tutela cautelar e como tal nem aqui deve ser dispensado); a alínea b), referindo-se ao decretamento de providências conservatórias, exige não que a pretensão aparente ser procedente mas que não seja manifestamente improcedente – um critério de menor exigência que a doutrina apelida de fumus non mali iuris; por fim a alínea c) do 120.º/1 quanto às providências antecipatórias exige o critério normal de aparência de bom direito - ou seja que a pretensão apresente alguma probabilidade de procedência.
[8] Na dimensão de equilíbrio, segundo ensina Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, pág. 311.
[9] A medida exigida no 120.º/2 parece já não implicar considerações de proporcionalidade: a questão seria saber apenas qual dos danos seria o mais avultado. Mas é nesta consideração de apurar o dano mais relevante que o princípio da proporcionalidade releva – pois dificilmente os danos em questão terão a mesma natureza.
[10] Mário Aroso de Almeida fala num “juízo de valor relativo” – Manual de Processo Administrativo, pág. 479. No mesmo sentido Viera de Andrade (…).
[11] Todavia esta continua a ser a situação paradigmática no Contencioso Administrativo, como aponta Vieira de Andrade, ob. cit., pág. 311.
[12] Sobre o tema vide Pedro Gonçalves, A justiciabilidade dos litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública in Cadernos de Justiça Administrativa N.º 35, Setembro/Outubro de 2002.
[13] Do mesmo modo Mário Aroso de Almeida, ob. cit., pp. 479 e 480.
[14] Assim Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 311-313.



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