terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Acautelar o processo cautelar: análise do artigo 131º do CPTA


I. O artigo 131º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) consagra a recente figura do decretamento provisório de providências cautelares. Temos aqui, “uma tutela cautelar do próprio processo cautelar”[1], a qual visa evitar o periculum in mora do próprio meio cautelar, ou seja, evitar os danos que para o interessado possam decorrer da demora do processo cautelar. Adere-se, deste modo, à distinção geral entre providências cautelares urgentes e urgentíssimas, como sucede na Lei Espanhola[2], e que FAUSTO DE QUADROS defendeu aquando da discussão do Projecto do Código[3].
O fundamento deste instituto é controverso. LOPES DE SOUSA quase o reconduz a uma forma de tutela qualificada de direitos, liberdades e garantias, como concretização do disposto no 20º/5 da Constituição da República Portuguesa (CRP)[4]. Permitimo-nos a discordar. Como o autor admite, o âmbito do mecanismo do 131º não se restringe à tutela de direitos, liberdades ou garantias, antes se vocaciona “para quaisquer situações de especial urgência”. Cremos, pois, na esteira de TIAGO ANTUNES[5], que a ratio do instituto passa antes pela tutela de situações de manifesta e excepcional urgência – de urgência agravada –, às quais não basta, sequer, a celeridade de um processo cautelar. A análise do conceito desta “urgência agravada” deve, a nosso ver, apoiar-se na “especial vulnerabilidade do objecto”, como defende SOFIA HENRIQUES[6]. Abrangendo quaisquer direitos e interesses legalmente protegidos, apenas poderemos recorrer ao mecanismo do 131º quando a manutenção de tais direitos e interesses, bastando-se com uma mera tutela transitória, não pode ser feita nos prazos da tramitação “normal” dos processos cautelares. Tal entendimento decorre, primordialmente, da garantia de tutela jurisdicional efectiva, como prevista no 268º/4 CRP.
É o seu fundamento que explica que o decretamento provisório da providência não dependa dos pressupostos exigidos no artigo 120º CPTA. Exige-se tão-só, a verificação de uma das situações previstas no 131º/1 e 3, às quais é transversal a “especial urgência” supra referida. Ainda assim, aplicam-se a este mecanismo os fundamentos gerais de rejeição das providências cautelares, como previstos no artigo 116º.

II. O pedido de decretamento provisório deverá, r.g., ser feito aquando do requerimento para adopção do próprio processo cautelar (114º CPTA). No entanto, nada impede (apesar da formulação do 133º/2) que, dada a alteração da situação de facto inicial, o decretamento seja requerido na pendência do processo cautelar[7].
Discutida tem sido a possibilidade de, ainda que o decretamento provisório não tenha sido requerido formal e autonomamente pelo interessado, poder o juiz oficiosamente decidi-lo, aquando da sua intervenção em despacho liminar. Apesar da obscuridade do 131º/3 neste ponto, parece-nos que só uma interpretação consentânea com o princípio da tutela jurisdicional efectiva será admissível, aceitando-se a possibilidade de decretamento oficioso quando os factos permitam afirmar o preenchimento dos pressupostos do 131º[8].

III. Concluso o processo, o juiz apreciará num primeiro momento, face aos factos presentes no requerimento do interessado[9], a existência das situações que permitem o recurso ao mecanismo do decretamento provisório, como seja a lesão iminente e irreversível do direito, liberdade ou garantia, ou a especial urgência do processo. Fá-lo-á dispensando todas as formalidades não essenciais ao esclarecimento daquelas situações, opção que se justifica dada a intenção de regulação provisória atinente ao meio do 131º, e não a de definição da regulação a vigorar no processo principal.
          Caso o juiz considere que os pressupostos do preceito não estão preenchidos deve fazer seguir o processo como um normal pedido de providência cautelar, nos trâmites gerais[10]. Se todos os pressupostos se verificarem, deverá o juiz decretar preliminarmente a providência, nos termos do 131º/3, dentro do prazo de 48 horas. Os efeitos deste decretamento deverão ser imediatamente notificados às autoridades às quais se dirige a providência, nos termos da primeira parte do 131º/6, ou seja, segundos as regras dos actos urgentes, previstas no 122º/1.
Num segundo momento, decretada provisoriamente a providência nos termos do 131º/3, deve tal decretamento ser avaliado, procurando o juiz averiguar da necessidade de o levantar, alterar ou manter, nos termos do 131º/6. Neste preceito prevê-se a possibilidade de confirmação da decisão de decretamento preliminar seguindo os critérios gerais de atribuição de providências cautelares[11] (ainda que mais sumários), depois de se garantir um prazo para a audição das partes e remeter novamente ao juiz. Pretende-se, desta forma, garantir o contraditório que fora “sacrificado” no primeiro momento do processo. Daí que se tenda a rejeitar a possibilidade de diligências instrutórias[12].
Entendemos que a providência provisoriamente decretada e confirmada nos termos do 131º/3 e 6, visa vigorar meramente a título provisório na pendência do processo cautelar propriamente dito. Assim, a vigência do mecanismo do decretamento provisório depende dos termos que segue o processo cautelar em causa, cessando quando este for definitivamente decretado. Decorre daqui a configuração deste mecanismo como um mero incidente do processo cautelar, e não como um processo cautelar especial. Pela acessoriadade do processo cautelar em relação ao processo principal, o decretamento provisório estará também condicionado pelas eventuais decisões no âmbito deste.           Não há, a nosso ver, na confirmação, modificação ou levantamento previstos no número 6 qualquer decisão definitiva da providência cautelar, como alguns entendem[13], até porque uma decisão de tal natureza não se compadecia com prazos tão curtos para a decisão do juiz como os estabelecidos no preceito – de cinco dias[14].

IV. O número 5 do preceito em análise estabelece a inimpugnabilidade da decisão provisória. Convém, assim, discernir que tal impossibilidade apenas respeita apenas a decisão provisória a que alude o número 3. Pois, no caso da decisão posterior, de levantamento, manutenção ou alteração da providência, a impugnabilidade é admitida nos termos gerais, como bem recorda LOPES DE SOUSA[15]. Assim, cremos, seguindo o entendimento de SOFIA HENRIQUES, que quando a decisão provisória a que respeita o nº5 é de recusa não se pode aplicar tal impossibilidade, já que a mesma vedaria o direito ao recurso do interessado[16].

V. O mecanismo do decretamento provisório de providências visa situações em que os direitos e interesses legalmente protegidos do requerente se bastem com uma mera decisão transitória, ainda que “urgentíssima”. Já quando os interesses do requerente não se coadunem com uma decisão transitória, i.e., quando uma decisão de mérito seja requisito indispensável àqueles (pois que a adopção de uma providência cautelar levaria à inutilidade do processo principal), deve recorrer-se à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias (109º CPTA). É, assim, “a verificada não indispensabilidade de célere emissão de uma decisão sobre o mérito da causa, que delimita o campo de aplicação do decretamento provisório de providências cautelares (…) e o da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias”.[17]Estabelece-se, assim, uma subsidiariedade entre o mecanismo do 131º e do 109º, que determina que, quando a parte recorra ao mecanismo do 109º e os bens em causa se bastassem com uma mera tutela cautelar (131º), se deva recorrer à convolação, nos termos que definiremos infra.

 VI. Questiona-se, por último, o que sucede quando o interessado, devendo pedir uma intimação nos termos do 109º, recorre antes ao mecanismo do 131º (e vice-versa)?
No primeiro caso, requerendo-se indevidamente um mecanismo cautelar, defende alguma doutrina que, ao abrigo do 88º, o tribunal possa requerer o aperfeiçoamento do articulado, de forma a que este se adeque aos requisitos do 109º. A Jurisprudência, por sua vez, diverge. Se por um lado se opta pela absolvição da instância por impropriedade do meio, por outro, opta-se por convolar o meio numa tutela definitiva. Salvaguardando a tutela da vontade do interessado, cremos que se deverá notificar a parte para determinar se a mesma quer aperfeiçoar o requerimento e aceitar a convolação, ou, na falta de resposta, se procede à absolvição da instância. Subsidariamente, parece-nos que podemos ao critério previsto no Código de Processo Civil, nos seus artigos 199º e 202º (ex vi 1º CPTA), que visa o erro na forma do processo. Assim, em princípio, anula-se todos os actos que não se adequem ao processo correcto. Tal não sucederá, claro, quando se verificar uma absoluta idoneidade da forma do processo, caso em que se determinará a nulidade do processo e consequente absolvição da instância.
Já quando seja requerido um processo sumário urgente, como a intimação prevista no 109º, e o juiz entenda que o processo devido seria o decretamento provisório de providência, parece-nos que o juiz deverá notificar a parte da possibilidade de convolação, podendo esta se opor[18]. Permite-se assim, garantir as expectativas da parte, já que os encargos quanto à intimação e aos meios cautelares são distintos (estando a intimação isenta)[19].  



[1] Vide, Paulo Pereira Gouveia, As realidades da nova tutela cautelar administrativa, CJA, nº 55, p. 14
[2] Ley de la Jurisdicción Contencioso-Administrativa, de 1998, nos seus artigos 129º a 135º.
[3] Cfr. O Debate Universitário, p. 163
[4] Cfr. Notas práticas sobre o decretamento provisório de providências cautelares, CJA, 47, 2004
[5] Cfr. “O «Triângulo das Bermudas» no Novo Contencioso Administrativo”, Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano, II, 2006, p. 713 e ss.
[6] Cfr. A Tutela Cautelar Não Especificada no Novo Contencioso Administrativo Português, Relatório de Mestrado, 2005, p.95.
[7] Neste sentido, apoiando-se no princípio da tutela jurisdicional efectiva, Paulo Pereira Gouveia, ob. cit., p. 14. Aparentemente em sentido contrário, Acórdão STA Processo nº 01078/11, de 05.06.2012, ponto IX, disponível em dgsi.pt.
[8] Cfr. Neste sentido, Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2012, p. 453; José C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª edição, p. 372.
[9] A leitura do requerimento deverá permitir¸per si, a apreensão dos factos relevantes à prova da situação de urgência, sem prejuízo de outros documentos que o integrem. Neste sentido tem decidido a jurisprudência, v.g., Acórdão TAF Lisboa, de 15.03.2005, Processo 662/05.2BELSB.
[10] Cfr. Aroso de Almeida/Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativo¸3ª edição, 2010 – anotação ao artigo 131º, p.875
[11] Discordando, Vieira de Andrade, ob. cit., p.373, admitindo que apenas se deve recorrer aos mesmos da decisão preliminar, como o Autor refere, a especial perigosidade para os bens. Defende o Autor que, quando se recorra aos critérios do 120º, pode já o juiz tomar uma decisão que seja a definitiva para o processo cautelar principal.
[12] Cfr. Aroso de Almeida/Carlos Cadilha, ob. cit., p. 877. Também, Jorge de Sousa, ob. cit., p.48.
[13] Vide nota 11.
[14] Neste sentido, Acórdão TAF Lisboa de 14.04.2005, Processo 662/05.2BELSB.
[15] Ob. cit., p. 58.
[16] Ainda que a jurisprudência tenda a entender em sentido contrário. Como nota Sofia Henriques, no Acórdão TCA Sul, de 07.04.2005, Processo 672/05, em que reiterou a insusceptibilidade de recurso, quer face a decisão provisória de deferimento, quer de indeferimento.
[17] Acórdão STA, Processo 0855/06, de 06.12.2006. Delimita-se, da mesma forma, de outros processos não cautelares, como por exemplo o 121º. Vide, a este respeito, Tiago Antunes, ob. cit. e Sofia Henriques, ob. cit., p. 93 ss.
[18] Veja-se, a este propósito, o Acórdão TCA Sul, de 06.10.2011, Processo 07919/11.
[19] Seguimos, em ambas as hipóteses, as posições de Lopes de Sousa, ob. cit., p.46 ss.e Sofia Henriques, ob. cit., p.100.



Isabel Ferreira (19643)

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