I. O artigo
131º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) consagra a recente figura do decretamento provisório de providências cautelares. Temos aqui, “uma tutela cautelar do próprio processo
cautelar”[1],
a qual visa evitar o periculum in mora
do próprio meio cautelar, ou seja, evitar os danos que para o interessado
possam decorrer da demora do processo cautelar. Adere-se, deste modo, à
distinção geral entre providências cautelares urgentes e urgentíssimas, como
sucede na Lei Espanhola[2],
e que FAUSTO DE QUADROS defendeu aquando da discussão do Projecto do Código[3].
O fundamento
deste instituto é controverso. LOPES DE SOUSA quase o reconduz a uma forma de
tutela qualificada de direitos, liberdades e garantias, como concretização do
disposto no 20º/5 da Constituição da República Portuguesa (CRP)[4].
Permitimo-nos a discordar. Como o autor admite, o âmbito do mecanismo do 131º
não se restringe à tutela de direitos, liberdades ou garantias, antes se
vocaciona “para quaisquer situações de especial urgência”. Cremos, pois, na
esteira de TIAGO ANTUNES[5],
que a ratio do instituto passa antes
pela tutela de situações de manifesta e excepcional urgência – de urgência agravada –, às quais não basta,
sequer, a celeridade de um processo cautelar. A análise do conceito desta “urgência
agravada” deve, a nosso ver, apoiar-se na “especial
vulnerabilidade do objecto”, como defende SOFIA HENRIQUES[6].
Abrangendo quaisquer direitos e interesses legalmente protegidos, apenas
poderemos recorrer ao mecanismo do 131º quando a manutenção de tais direitos e
interesses, bastando-se com uma mera tutela transitória, não pode ser feita nos
prazos da tramitação “normal” dos processos cautelares. Tal entendimento
decorre, primordialmente, da garantia de tutela jurisdicional efectiva, como
prevista no 268º/4 CRP.
É o seu
fundamento que explica que o decretamento provisório da providência não dependa
dos pressupostos exigidos no artigo 120º CPTA. Exige-se tão-só, a verificação
de uma das situações previstas no 131º/1 e 3, às quais é transversal a
“especial urgência” supra referida.
Ainda assim, aplicam-se a este mecanismo os fundamentos gerais de rejeição das
providências cautelares, como previstos no artigo 116º.
II. O pedido
de decretamento provisório deverá, r.g., ser
feito aquando do requerimento para adopção do próprio processo cautelar (114º CPTA).
No entanto, nada impede (apesar da formulação do 133º/2) que, dada a alteração
da situação de facto inicial, o decretamento seja requerido na pendência do
processo cautelar[7].
Discutida
tem sido a possibilidade de, ainda que o decretamento provisório não tenha sido
requerido formal e autonomamente pelo interessado, poder o juiz oficiosamente
decidi-lo, aquando da sua intervenção em despacho liminar. Apesar da
obscuridade do 131º/3 neste ponto, parece-nos que só uma interpretação consentânea
com o princípio da tutela jurisdicional efectiva será admissível, aceitando-se
a possibilidade de decretamento oficioso quando os factos permitam afirmar o
preenchimento dos pressupostos do 131º[8].
III. Concluso
o processo, o juiz apreciará num primeiro momento, face aos factos presentes no
requerimento do interessado[9],
a existência das situações que permitem o recurso ao mecanismo do decretamento
provisório, como seja a lesão iminente e irreversível do direito, liberdade ou
garantia, ou a especial urgência do processo. Fá-lo-á dispensando todas as formalidades
não essenciais ao esclarecimento daquelas situações, opção que se justifica
dada a intenção de regulação provisória atinente ao meio do 131º, e não a de definição
da regulação a vigorar no processo principal.
Caso o juiz considere que os
pressupostos do preceito não estão preenchidos deve fazer seguir o processo
como um normal pedido de providência cautelar, nos trâmites gerais[10].
Se todos os pressupostos se verificarem, deverá o juiz decretar preliminarmente
a providência, nos termos do 131º/3, dentro do prazo de 48 horas. Os efeitos
deste decretamento deverão ser imediatamente notificados às autoridades às quais
se dirige a providência, nos termos da primeira parte do 131º/6, ou seja,
segundos as regras dos actos urgentes, previstas no 122º/1.
Num segundo
momento, decretada provisoriamente a providência nos termos do 131º/3, deve tal
decretamento ser avaliado, procurando o juiz averiguar da necessidade de o
levantar, alterar ou manter, nos termos do 131º/6. Neste preceito prevê-se a
possibilidade de confirmação da decisão de decretamento preliminar seguindo os
critérios gerais de atribuição de providências cautelares[11]
(ainda que mais sumários), depois de se garantir um prazo para a audição das
partes e remeter novamente ao juiz. Pretende-se, desta forma, garantir o
contraditório que fora “sacrificado” no primeiro momento do processo. Daí que
se tenda a rejeitar a possibilidade de diligências instrutórias[12].
Entendemos
que a providência provisoriamente decretada e confirmada nos termos do 131º/3 e
6, visa vigorar meramente a título provisório na pendência do processo cautelar
propriamente dito. Assim, a vigência do mecanismo do decretamento provisório depende
dos termos que segue o processo cautelar em causa, cessando quando este for
definitivamente decretado. Decorre daqui a configuração deste mecanismo como um
mero incidente do processo cautelar, e não como um processo cautelar especial. Pela
acessoriadade do processo cautelar em relação ao processo principal, o
decretamento provisório estará também condicionado pelas eventuais decisões no
âmbito deste. Não há, a
nosso ver, na confirmação, modificação ou levantamento previstos no número 6
qualquer decisão definitiva da providência cautelar, como alguns entendem[13],
até porque uma decisão de tal natureza não se compadecia com prazos tão curtos
para a decisão do juiz como os estabelecidos no preceito – de cinco dias[14].
IV. O número
5 do preceito em análise estabelece a inimpugnabilidade da decisão provisória.
Convém, assim, discernir que tal impossibilidade apenas respeita apenas a
decisão provisória a que alude o número 3. Pois, no caso da decisão posterior,
de levantamento, manutenção ou alteração da providência, a impugnabilidade é
admitida nos termos gerais, como bem recorda LOPES DE SOUSA[15].
Assim, cremos, seguindo o entendimento de SOFIA HENRIQUES, que quando a decisão
provisória a que respeita o nº5 é de recusa não se pode aplicar tal impossibilidade,
já que a mesma vedaria o direito ao recurso do interessado[16].
V. O
mecanismo do decretamento provisório de providências visa situações em que os
direitos e interesses legalmente protegidos do requerente se bastem com uma
mera decisão transitória, ainda que “urgentíssima”. Já quando os interesses do
requerente não se coadunem com uma decisão transitória, i.e., quando uma decisão de mérito seja requisito indispensável
àqueles (pois que a adopção de uma providência cautelar levaria à inutilidade
do processo principal), deve recorrer-se à intimação para a protecção de
direitos, liberdades e garantias (109º CPTA). É, assim, “a verificada não indispensabilidade de célere emissão de uma decisão
sobre o mérito da causa, que delimita o campo de aplicação do decretamento provisório de providências
cautelares (…) e o da intimação para protecção de direitos, liberdades e
garantias”.[17]Estabelece-se,
assim, uma subsidiariedade entre o mecanismo do 131º e do 109º, que determina
que, quando a parte recorra ao mecanismo do 109º e os bens em causa se
bastassem com uma mera tutela cautelar (131º), se deva recorrer à convolação,
nos termos que definiremos infra.
VI. Questiona-se, por último, o que sucede
quando o interessado, devendo pedir uma intimação nos termos do 109º, recorre
antes ao mecanismo do 131º (e vice-versa)?
No primeiro
caso, requerendo-se indevidamente um mecanismo cautelar, defende alguma
doutrina que, ao abrigo do 88º, o tribunal possa requerer o aperfeiçoamento do
articulado, de forma a que este se adeque aos requisitos do 109º. A
Jurisprudência, por sua vez, diverge. Se por um lado se opta pela absolvição da
instância por impropriedade do meio, por outro, opta-se por convolar o meio
numa tutela definitiva. Salvaguardando a tutela da vontade do interessado,
cremos que se deverá notificar a parte para determinar se a mesma quer
aperfeiçoar o requerimento e aceitar a convolação, ou, na falta de resposta, se
procede à absolvição da instância. Subsidariamente, parece-nos que podemos ao
critério previsto no Código de Processo Civil, nos seus artigos 199º e 202º (ex vi 1º CPTA), que visa o erro na forma
do processo. Assim, em princípio, anula-se todos os actos que não se adequem ao
processo correcto. Tal não sucederá, claro, quando se verificar uma absoluta
idoneidade da forma do processo, caso em que se determinará a nulidade do
processo e consequente absolvição da instância.
Já quando
seja requerido um processo sumário urgente, como a intimação prevista no 109º,
e o juiz entenda que o processo devido seria o decretamento provisório de
providência, parece-nos que o juiz deverá notificar a parte da possibilidade de
convolação, podendo esta se opor[18].
Permite-se assim, garantir as expectativas da parte, já que os encargos quanto
à intimação e aos meios cautelares são distintos (estando a intimação isenta)[19].
[1] Vide, Paulo Pereira Gouveia, As realidades da nova tutela cautelar
administrativa, CJA, nº 55, p. 14
[2] Ley de la Jurisdicción
Contencioso-Administrativa, de 1998, nos seus artigos 129º a 135º.
[3] Cfr. O Debate Universitário, p. 163
[4] Cfr. Notas práticas sobre o decretamento
provisório de providências cautelares, CJA, 47, 2004
[5] Cfr. “O «Triângulo das Bermudas» no Novo
Contencioso Administrativo”, Estudos em Homenagem ao Professor Marcello
Caetano, II, 2006, p. 713 e ss.
[6] Cfr. A Tutela Cautelar Não Especificada no Novo
Contencioso Administrativo Português, Relatório de Mestrado, 2005, p.95.
[7] Neste
sentido, apoiando-se no princípio da tutela jurisdicional efectiva, Paulo
Pereira Gouveia, ob. cit., p. 14.
Aparentemente em sentido contrário, Acórdão STA Processo nº 01078/11, de
05.06.2012, ponto IX, disponível em dgsi.pt.
[8] Cfr.
Neste sentido, Mário Aroso de Almeida, Manual
de Processo Administrativo, 2012, p. 453; José C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª
edição, p. 372.
[9] A
leitura do requerimento deverá permitir¸per
si, a apreensão dos factos relevantes à prova da situação de urgência, sem
prejuízo de outros documentos que o integrem. Neste sentido tem decidido a
jurisprudência, v.g., Acórdão TAF Lisboa, de 15.03.2005, Processo 662/05.2BELSB.
[10] Cfr.
Aroso de Almeida/Carlos Cadilha, Comentário
ao Código de Processo nos Tribunais Administrativo¸3ª edição, 2010 –
anotação ao artigo 131º, p.875
[11] Discordando,
Vieira de Andrade, ob. cit., p.373,
admitindo que apenas se deve recorrer aos mesmos da decisão preliminar, como o Autor refere, a especial perigosidade para os bens. Defende o Autor que, quando
se recorra aos critérios do 120º, pode já o juiz tomar uma decisão que seja a
definitiva para o processo cautelar principal.
[12] Cfr. Aroso
de Almeida/Carlos Cadilha, ob. cit., p.
877. Também, Jorge de Sousa, ob. cit., p.48.
[13] Vide nota 11.
[14] Neste
sentido, Acórdão TAF Lisboa de 14.04.2005, Processo 662/05.2BELSB.
[15] Ob. cit., p. 58.
[16] Ainda
que a jurisprudência tenda a entender em sentido contrário. Como nota Sofia
Henriques, no Acórdão TCA Sul, de 07.04.2005, Processo 672/05, em que reiterou
a insusceptibilidade de recurso, quer face a decisão provisória de deferimento,
quer de indeferimento.
[17] Acórdão
STA, Processo 0855/06, de 06.12.2006. Delimita-se, da mesma forma, de outros processos não cautelares, como por exemplo o 121º. Vide, a este respeito, Tiago Antunes, ob. cit. e Sofia Henriques, ob. cit., p. 93 ss.
[18] Veja-se, a este propósito, o Acórdão TCA
Sul, de 06.10.2011, Processo 07919/11.
[19]
Seguimos, em ambas as hipóteses, as posições de Lopes de Sousa, ob. cit., p.46 ss.e Sofia Henriques, ob. cit., p.100.
Isabel Ferreira (19643)
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