O contencioso administrativo como ‘Direito Constitucional concretizado’.
Dependência constitucional do Direito administrativo e dependência
administrativa do Direito Constitucional:
Uma das questões mais necessitadas de psicanálise é a relação difícil entre
Administração e Constituição, que se parece com a de irmãos siameses que estiveram
muitas vezes desavindos, mesmo quando não podiam passar um sem o outro. É
necessário compreender o exacto significado desse relacionamento complexo, não
podendo significar, em termos jurídicos a impermeabilidade do Direito
Administrativo em face dos valores constitucionais. Isso não significa que seja
suficiente a simples consideração de que o Direito Administrativo depende do
Direito Constitucional só porque a Constituição se encontra no topo do
ordenamento jurídico pois tal equivaleria a reduzir o problema a uma simples
proclamação do Direito Administrativo como Direito Constitucional concretizado.
Em suma, a discussão acerca das bases constitucionais do Direito
Administrativo, não obstante uma aparência de partilha de um mínimo denominador
comum, serviu para demonstrar que, sob esse manto vocabular, se escondiam duas
concepções antagónicas: uma admitindo, a outra negando, a efectiva relevância
da Constituição para a Administração.
Resumindo toda a filosofia de relacionamento entre Direito Administrativo e
Direito Constitucional a uma questão de hierarquia de normas, ao considerar que
é evidente que a parte superior das fontes do Direito Administrativo é composta
por normas de valor constitucional, cujo respeito se encontra
jurisdicionalmente assegurado (VEDEL).
Desde os primórdios, nem a doutrina administrativa se tinha esquecido da
referência à Constituição nem a jurisprudência ignorava a supremacia das normas
constitucionais. Daí que, conforme escreveu VEDEL, seria excessiva a
interpretação coperniciana da constitucionalização, ela seria um contra-senso
se referida ao juiz administrativo. Conforme escreve BACHOF se nem a
subordinação à Constituição do Direito Administrativo nem também a perspectiva
das suas relações constituem uma novidade, aquilo que é inteiramente novo e só
surgiu com a Lei fundamental é a imediata e permanente confrontação de qualquer
actividade administrativa com a Constituição. A Constituição é um padrão para a
aferição da validade e para o controlo da actuação administrativa. Do que se
trata não é mais que uma mera questão formal de subordinação da Administração à
Constituição, mas sim do problema material da realização continuada e
permanente das normas fundamentais através do Direito Administrativo.
Torna-se indispensável a cooperação frutuosa entre a doutrina
constitucional e a doutrina administrativa e é necessário colocar a questão de
saber em que medida é que o Direito Administrativo se deve enraizar no Direito
Constitucional. A resposta num Estado de Direito Pós-social é de uma
dependência recíproca.
Pensando agora no domínio processual, existe uma relação de dependência
constitucional do direito administrativo que faz dele direito constitucional
concretizado. As modernas Constituições passaram também a incluir regras quanto
à natureza e à organização dos tribunais competentes para o julgamento dos
litígios administrativos. Todas estas questões do Processo Administrativo foram
promovidas à categoria de princípios e de regras fundamentais, no âmbito de um
movimento de constitucionalização que se verificou por toda a Europa. Por outro
lado, é afirmada a função e a natureza subjectiva do Contencioso
Administrativo, mediante a garantia de um direito fundamental à protecção plena
e efectiva dos particulares. A dependência do Processo Administrativo
relativamente à Constituição é tão forte que a mudança de paradigma só se pôde
realizar com o auxílio do Direito Constitucional, fenómeno que ocorreu a partir
da década de setenta do século XX, em simultâneo com a implantação do Estado
Pós-Social.
Passou a existir uma Constituição do processo administrativo material, as têtes de chapitre. Vai-se assistir,
portanto, à inversão da velha fórmula de Mayer. Quem passava não era o Direito
Constitucional mas sim o Direito Administrativo. Seria correcto dizer-se que o
Direito Administrativo passa e o Direito Constitucional fica. Mas se há uma
dependência constitucional do Direito Administrativo, a afirmação inversa é
igualmente verdadeira: existe também uma dependência administrativa do Direito
Constitucional e isto é evidente no Contencioso Administrativo enquanto domínio
privilegiado de realização dos direitos fundamentais pois é preciso que existam
os meios contenciosos adequados, de forma a assegurar a sua tutela plena e
efectiva.
Tendo em conta esta dimensão processual, HABERLE propõe a revisão da
doutrina dos status de JELLINEK, mediante a criação de um status civicus
processualis – status activus.
Esta mudança de paradigma do direito material para o direito de procedimento
confere à Administração e aos Tribunais um papel decisivo na realização dos
direitos fundamentais.
Por outro lado, a extensão da protecção jurídica no que respeita ao acesso
aos tribunais e a processo judicial deve ser vista como a concretização de um
programa de extensão dos direitos fundamentais materiais. Assim, a consideração
dos direitos fundamentais como direitos subjectivos com uma eficácia
procedimental permite garantir a respectiva protecção jurídica ainda antes da
intervenção dos tribunais.
De facto: o regime do poder público, os princípios gerais do direito, a
responsabilidade pública pré-existiram em relação aos textos constitucionais,
pelo que, num certo sentido pode mesmo falar-se de administrativização do
Direito Constitucional, no duplo sentido desses princípios serem incorporados
ao Direito Constitucional positivo e dos tribunais Constitucionais adoptarem
técnicas e mecanismos jurídicos inspirados nos utilizados tradicionalmente
pelos tribunais administrativos (VEDEL). Pode-se falar numa interpretação
conforme ao processo administrativo, conforme à constituição do direito
administrativo (HABERLE).
Por último, a actual conjuntura de crise e de mudança das instituições do
Direito Público introduz uma nova aproximação entre Constituição e Direito
Administrativo ou entre Constituição e Processo Administrativo.
Dados os conceitos chave das novas dogmáticas juspublicísticas –
flexibilidade, eficiência, perturbam quer o sentido do Estado Constitucional
quer a cultura jus-administrativista clássica (GOMES CANOTILHO). Tem mais de
metamórfico obrigando à reconstrução permanente do Direito Público.
A Constituição
Portuguesa do Processo Administrativo:
A Constituição Portuguesa estabelece um Contencioso Administrativo
integralmente jurisdicionalizado e destinado à tutela plena e efectiva dos
direitos dos particulares nas relações jurídicas administrativas, conforme
decorre das disposições dos 202º e seguintes e números 4 e 5 do art.268º. A
consagração deste modelo de Contencioso típico do período da confirmação, em
Portugal saltou uma etapa uma vez que com a CRP de 76, o baptismo é simultâneo
da confirmação. As posteriores revisões e a própria CRP de 76 inserem-se no
movimento de constitucionalização do Contencioso Administrativo que se caracteriza
pela elevação ao nível constitucional da garantia do controlo jurisdicional
pela consagração de direitos fundamentais em matéria de Processo
Administrativo. De entre estes, avulta o direito de acesso à justiça
administrativa que é direito fundamental de duas formas. Ele é instrumento de
efectividade dos direitos fundamentais e é, mais genericamente, um direito
processual fundamental.
O processo não é mais a patologia cuja importância convinha necessariamente
reduzir mas é expressão do Estado de Direito mas também sinal de que as pessoas
continuam a participar nele enquanto agentes activos e cidadãos.
A consagração deste modelo constitucional implica a superação dos traumas
de infância.
É necessário analisar o modo como a nossa Constituição trata do Contencioso
Administrativo. A lógica da constituição aberta para uma sociedade aberta
obriga a considerar tanto o texto como a prática constitucionais de acordo com
uma perspectiva dinâmica. Porque a Constituição é uma realidade viva e não uma
pura forma, sem que isso signifique a perda da sua normatividade.
João Folgado, 19675
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