quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O Asteróide do Acto Administrativo Impugnável


DA VIAGEM NÃO RELATADA DO PRINCIPEZINHO AO ASTERÓIDE DO ACTO ADMINISTRATIVO IMPUGNÁVEL

Nas muitas aventuras que o nosso conhecido Principezinho fez antes de chegar ao nosso planeta (o planeta Terra), há uma viagem em particular e uma aventura que não foram contadas, ou, se de facto foram, tal não ocorreu muitas vezes, uma vez que apenas eu a sei e disponho-me, hoje, então, a partilhá-la.
O Principezinho chegou ao dito asteróide num dia pacato e sem grande alarido. Era um asteróide limpo e asseado, com alguma população que tinha apenas como factor comum entre eles, o facto de serem muito ocupados.
O primeiro encontro que teve neste asteróide foi uma estranha figura de duas cabeças e decorreu mais ou menos assim:
-        Ouve lá, que asteróide é este? – perguntou o Principezinho.
-        É o asteróide dos Actos Administrativos Impugnáveis. – respondeu o Acto.
-        Dos Actos… o quê? – repetiu confuso o Principezinho (aqui convém recordar que ele é apenas uma criança, curiosa e não habitante da terra, mas criança ainda assim).
-        É o seguinte: nós somos todos aqueles actos administrativos que são susceptíveis de ferir posições dos particulares.
-        E sempre viveram aqui?
-        Bem… nem todos! – esclareceu o Acto – A verdade é ficámos à mercê de aberturas em termos de Processo Administrativo, bem como de metamorfoses do próprio conceito de Acto Administrativo que alargou a impugnabilidade dos actos administrativos, estabelecendo-se, nomeadamente um direito fundamental de impugnação dos actos que firam os particulares. É o que se encontra no artigo 268º/4 da Constituição, como sabes. – e aqui o Principezinho acenou com a cabeça em concordância, muito embora não soubesse que “Constituição” era aquela, e o Acto continuou – Aquando da reforma (um dos marcos históricos cá no asteróide), impusemos consagração de critérios de impugnabilidade, como do acto lesivo. De uma maneira ou de outra, o critério de impugnabilidade anda ligado com a legitimidade processual (e ainda aqui, para saber qual acção é que está em causa). O que achas?
-        Er…bem, eu… - o Principezinho parecia confuso mas o Acto apressou-se a continuar.
-        Ora um verdadeiro Acto Administrativo Impugnável, como nós, pressupõe a base de um conceito material de acto administrativo. Contudo pode ser tanto mais lato como mais estrito face a ele. Lato em termos orgânicos, estrito em termos de eficácia externa, ou susceptíveis de lesar direitos dos particulares. Concerteza que estás familiarizado com o artigo 51º? Sim? Certo. Agora podemos ainda falar dos vários tipos em que nos agrupamos. Eu por exemplo, sou Acto de Indeferimento Expresso, Impugnável, e se bem que tenha eficácia externa, é preferível um Pedido de Condenação da Administração à prática de Acto Devido, mas esse asteróide é tão longe! Já o meu primo, o Acto de Indeferimento Tácito nem é para aqui chamado! Enfim... desculpa prender-te, tu pareces estar com pressa…
-        De facto estou!
-        Então vai e boa sorte! Se tiveres tempo, passa pelo Asteróide do Actos Administrativos Inimpugnáveis! Tenho lá uns amigos Pareceres e Comunicações que te contarão uma história ou duas!
O Principezinho agradeceu e partiu, e não teve tempo para visitar o tal asteróide dos Actos Inimpugnáveis, mas foi direitinho à Terra onde aprofundou os seus conhecimentos.

FIM

Bibliografia:
 - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Vasco Pereira da Silva
 - Justiça Administrativa - José Carlos Vieira de Andrade


MARGARIDA D’OLIVEIRA MARTINS
Nº 19725

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 3/2012 –


https://dre.pt/pdf1sdip/2012/09/18200/0527805282.pdf

Enquanto pesquisava jurisprudência, deparei-me com este acórdão que achei bastante interessante, por abordar diversos temas relevantes.

Começando por fazer um pequeno resumo da matéria de facto:
            - Este é um acórdão de fixação de jurisprudência, proferido pelo STA, no âmbito de duas anteriores decisões contraditórias: entre o processo 6360/10 TCA do sul, de 14.7.2010 e o acórdão TAF de Almada de 5.8.2011.
- Tendo havido uma decisão proferida (como sentença) pelo relator (juiz singular), no âmbito do artigo 27º/1 i) do CPTA, a recorrente intenta recurso da mesma.
- O Tribunal não conhece do recurso por entender que esta não é a forma correcta de reacção, sendo o meio adequado para o efeito a reclamação para a conferência.
- Recorre a autora da decisão por entender que é inconstitucional (os fundamentos são indicados no acórdão que desde já convido a ler, sob pena de uma indicação repetida e exaustiva dos mesmos no presente post)
            -Pretende este acórdão dar resposta à questão que se coloca de saber se cabem no conceito de “decisão” do artigo 27º/1 i) do CPTA as sentenças, acórdãos, despachos, para aplicação do nº2 do mesmo preceito, ou se antes, como invoca a recorrente, apenas cabem neste artigo os despachos, assim designados pelo Tribunal.
            - Cabe ainda saber se a classificação dada pelas partes (no caso, o Tribunal) releva para apurar a essência do acto.
           
Deixo portanto, um pequeno apontamento sobre as figuras em causa no referido acórdão, nomeadamente a figura base (recurso para uniformização da jurisprudência), bem como a reclamação para a conferência e também sobre o artigo 27º/2 (expondo a conclusão presente no referido acórdão).


Recurso para Uniformização da Jurisprudência – É uma modalidade de recursos extraordinários, que visa em primeira linha tomar uma posição no sentido de uniformizar casos que se coloquem no âmbito em que são proferidos, para impedir a contradição das decisões dos tribunais em casos substancialmente iguais ou semelhantes. O artigo 152º estabelece o seu regime. Tem de haver uma anterior contradição entre dois acórdãos. Para conhecer deste tipo de recurso é competente o pleno da secção de contencioso Administrativo do STA (artigo 25º/1 b) do ETAF).

Reclamação para a Conferência – é o meio processual que deve ser utilizado como reacção aos despachos proferidos pelo Relator (juiz singular). Vem plasmado no artigo 27º/2.

Decisão do tribunal quanto à questão colocada
 No conceito de decisão do artigo 27º/1, alínea i) cabem não só os despachos do relator, como qualquer outro tipo de decisão, nomeadamente sentenças. É irrelevante que o que os Tribunais lhe chamem pois estes apenas emitem uma decisão. “Das decisões proferidas por juiz singular que, nos termos da lei, devam ser apreciadas por tribunal colectivo, há sempre, e apenas, reclamação para a conferência. Nunca recurso.” Não é também o nome dado aos actos pelas partes ou pelo Tribunal que altera a sua essência. Diz ainda, e em jeito de conclusão o referido acórdão: “Cada acto processual ou instituto jurídico é o que é em consequência do modo como a lei os caracteriza, das suas qualidades próprias, e não por virtude do nome que lhes atribuímos. Se assim não fosse, e seguindo a perspectiva da recorrente, qualquer despacho de um relator deixaria de o ser se lhe chamasse sentença, ficando sujeito a recurso jurisdicional e não à reclamação para a conferência que o legislador desenhou para essa situação.”

Rita Camilo - nº19835

O Processo Executivo e os Títulos Executivos


           Nos termos do nº3 do artigo 4.º do Código de Processo Civil as acções executivas serão aquelas em que o autor requere as providências adequadas à reparação efectiva do direito violado.
No processo administrativo, à semelhança do processo civil,o processo executivo será aquele destinado a obter por via judicial as providências adequadas sobre aquilo que foi juridicamente declarado no processo declarativo.[1] Deste modo o autor quando se socorre de uma acção executiva tem como finalidade principal garantir a executoriedade da decisão judicial que conheceu do pedido no processo administrativo de natureza declarativa.
Os processos executivos encontram-se regulados nos artigos 157.º a 179.º do Código do Procedimento Administrativo (CPTA) e ser o processo de execução para prestação de factos ou coisas (artigo 162.º a 169.º), processo de execução para pagamento de quantia certa (artigo 170.º a 172.º) e processos de execução de sentenças de anulação de actos administrativos (artigos 173.º a 179.º).
Contudo a questão coloca-se sobre quais serão os títulos executivos.
O artigo 157.º do CPTA tem na sua previsão a execução de sentenças proferidas pelos tribunais administrativos. Deste modo o artigo em questão esclarece que será título executivo a sentença.
De salientar que apesar da previsão do artigo não significa que sempre que um particular esteja munido de uma sentença a possa executar de imediato. A contagem do prazo a que a administração estará obrigada a executar a sentença determina-se somente a partir do trânsito em julgado da sentença,artigo 160.º.[2]
Apesar de a sentença ser um título executivo, não é único título sendo que serão também consubstanciados com força executiva os demais documentos que sejam determinados pela lei substantiva[3]. No nº3 do supracitado artigo refere que também constituirá título executivo os actos administrativos inimpugnáveis[4] de que resultem direitos para os particulares a que a Administração não dê a devida execução. No nº4 acrescenta que o nº3 também será aplicável para obter a emissão de sentença que produza os efeitos de alvará ilegalmente recusado ou omitido.
 Em suma, as decisões judiciais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades administrativas, artigo 158.º CPTA. A não execução da sentença nos prazos previstos no CPTA incorre na previsão do artigo 159.º CPTA.
Sempre que uma sentença de um Tribunal Administrativo não seja executada, a consequência a retirar é que o interessado terá em sua posse um título executivo em que poderá recorrer ao processo executivo de modo a ver satisfeita a sua pretensão que já havia sido declarada no processo administrativo declarativo. Da mesma forma o que foi referido no que se refere a recorrer ao processo executivo serve também para os demais títulos declarativos acima referidos.








Isabel Ribeiro
Nº1426


[1] Nesse sentido Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo e José Carlos Vieira de Andrade, A justiça Administrativa.
[2] Artigo 677.º do Código do Processo Civil “ A decisão considera-se transitada em julgado logo que não susceptível de recurso ordinário ou reclamação”.
[3] Art.45 do Código de Processo Civil
[4] São os actos em que já não é passível a sua impugnação devido à ultrapassagem dos prazos previstos no artigo 58.º e 59.º do CPTA.

Arbitrariedade do T.C.A.?


O presente comentário tem como base a análise de um acórdão (1) cuja história, muito resumidamente, é a seguinte: um aluno de um colégio privado, que na altura frequentava o 11º Ano, obteve a classificação de 8 valores no final da frequência anual da disciplina de Português A. O encarregado de educação do aluno em causa, e representante legal, descontente com a classificação obtida pelo seu filho (que o impedia de transitar de ano), utilizou todos os meios administrativos possíveis com vista à revisão da nota, mas sem êxito. Por sua vez, o Presidente do Conselho Executivo do colégio, em resposta ao pedido de revisão, confirmou a nota que tinha sido atribuída ao aluno; na sequência desta decisão, foi pedida a suspensão da eficácia da decisão do Presidente. O Tribunal Administrativo de Circulo declarou-se incompetente para conhecer da matéria por considerar que o acto, cuja suspensão se requeria, era de direito privado. No entanto, o Tribunal Central Administrativo afirmou-se competente para conhecer do pedido e decretou a suspensão provisória do acto do Presidente do Conselho Executivo, condenando o colégio a promover todas as diligências necessárias à inscrição do aluno na disciplina de Português do 12º Ano.

Do breve sumário do acórdão, vários problemas podem desde logo ser levantados:
- Quanto à competência da jurisdição administrativa para avaliar actos praticados por entidades de direito privado, ainda que exerçam funções de relevo público (problemática do exercício privado de funções públicas)
- A possibilidade de suspensão de actos de carácter negativo, e a sua admissibilidade, tendo em conta que a decisão foi praticada por um órgão da administração escolar de um colégio privado
- A actuação do TCA em sede de tutela cautelar face aos fundamentos legais para a concessão de providências (e a admissibilidade da substituição do pedido de suspensão da eficácia pela concessão de tutela antecipatória)
- As consequências do decretamento da suspensão da decisão em causa

Quanto à primeira questão, parece que a decisão do TCA foi a mais correcta. Não obstante estarmos perante um acto emitido por uma escola privada, a avaliação dos alunos que pertencem a escolas particulares pode ser sindicada no Contencioso Administrativo. Sendo uma instituição de ensino particular, não deixa de desempenhar uma função de interesse público - o ensino. É de notar que existe sempre um nível mínimo de tutela por parte do Estado no que diz respeito às instituições de ensino particular, no que respeita ao controlo de legalidade; neste caso, não parece haver um nível de ingerência do Estado que possa levantar problemas como, por exemplo, a invasão na esfera de autonomia pedagógica da escola em questão. Deste modo, não parece correcto afirmar que a jurisdição administrativa não tenha competência para avaliar da legalidade do acto, por ter sido emitido por uma entidade de direito privado e, como tal, considera-se que o acto em questão tem natureza de acto administrativo. Dito isto, é importante referir que o Despacho do Director Pedagógico da escola, despacho esse que indefere o pedido de revisão de uma classificação negativa atribuída ao aluno, constitui um acto administrativo recorrível.

Em segundo lugar, devemos atentar sobre o carácter negativo do acto e da possibilidade do mesmo ver a sua eficácia suspensa. A suspensão visa assegurar a utilidade da futura sentença (2), ou seja, a suspensão não tem como objectivo bloquear os efeitos do acto impugnado mas determinar a produção dos efeitos que este acto havia recusado ao requerente. Neste caso, a suspensão pretendia um efeito útil concreto: o de possibilitar a frequência do aluno no ano seguinte à disciplina de Português. Deste modo, não sabemos se será possível qualificar este acto de indeferimento como exclusivamente negativo. A função da suspensão não se traduz na satisfação imediata dos interesses violados, mas em salvaguardar e garantir que a sentença final não se tornará inútil, de forma a permitir salvaguardar a eficácia do controlo de legalidade que o juiz exerce em sede de anulação. É por isso que as providências de carácter conservatório têm um regime diferente, menos exigente, que as providências antecipatórias.
Como se sabe, a decisão cautelar deve preencher vários requisitos: 1) o periculum in mora, ou perigo de demora, quando esteja em causa um prejuízo de difícil reparação, no qual o juiz deverá fazer um juízo de prognose de acordo com a situação futura (hipotética); 2) o fumus boni iuris, ou aparência de bom direito, segundo o qual o juiz tem o dever de (em termos sumários) avaliar a probabilidade de existência do direito invocado pelo particular ou da ilegalidade que diz existir. A lei opta por fazer uma graduação em função do tipo de providência requerida, sendo que, no caso de adopção de uma providência antecipatória acolhe um regime mais exigente com base num critério de probabilidade, ao invés do juízo negativo de não improbabilidade (non fumus malus) no caso das providências conservatórias; 3) ponderação de interesses.

Como refere Cláudio Monteiro (3), o critério do fumus boni iuris não está consagrado no nosso ordenamento jurídico como condição de procedência do pedido de suspensão de eficácia. O que releva não será tanto o conteúdo positivo ou negativo do acto, mas sim o conteúdo do tipo de interesse apresentado pelo particular, ou seja, um interesse na conservação da situação jurídica.
Acontece que, neste caso, o Tribunal acabou por exceder os limites da sua competência, uma vez que foi além da concessão de mera tutela conservatória que a suspensão da eficácia possibilita, concedendo uma medida cautelar diversa da requerida. Tudo isto poderia levar a presumir a atribuição de uma nota positiva ao aluno, ainda que provisoriamente, o que poderia levantar inúmeros problemas. Para a concessão de uma tutela antecipatória é necessário respeitar todos os pressupostos de aplicação da mesma, com especial atenção para a ponderação de interesses envolvidos, para que a mesma não se torne excessiva. De acordo com a situação relatada no acórdão, deveria ter sido feita uma ponderação equilibrada dos interesses em causa, contrapondo os eventuais riscos que a concessão da providência envolveria em relação aos danos que a sua recusa poderia trazer ao requerente. E mais: as providências devem limitar-se ao necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente e devem ser concedidas exclusivamente para esse efeito.
Não nos parece que a suspensão dos efeitos de uma classificação negativa numa disciplina caracterize o conceito de grave lesão do interesse público, nem mesmo que o prestígio da escola possa ser posto em causa pelo sucedido. A própria base probatória de um pedido de tutela conservatória é distinta daquela que fundamenta um pedido antecipatório. No caso em apreço o requerente limitou-se a invocar o prejuízo irreparável caso a decisão de recusa de alteração da classificação se mantivesse, justificação que seria bastante para fundamentar a decisão quanto à suspensão do acto, mas insuficiente para decretar uma providência de carácter antecipatório. Ainda assim, o TCA resolveu decidir pela última, por considerar necessária a alteração provisória da situação.

Por fim, importa ainda ter em conta as possíveis consequências da suspensão da decisão em causa. Supondo que a decisão de recurso de anulação é favorável ao aluno, isto é, o acto de indeferimento do pedido de revisão de nota é revogado, a principal consequência seria a condenação da escola a atribuir outra classificação ao aluno, com todos os problemas que uma revisão da classificação pode levantar: passados tantos anos quem faria essa classificação? O aluno, possivelmente a frequentar o ensino superior, estaria em condições de desigualdade perante os alunos que frequentam a disciplina em questões?
Por outro lado, se a decisão for desfavorável ao aluno, significa que o aluno continua com a disciplina de Português do 11º Ano por fazer, e como tal, a nota de português do 12º Ano não seria válida, assim como tornaria o (possível) ingresso na faculdade inválido.

Em suma, verificamos que o decretamento provisório de uma providência antecipatória não acautela de forma eficaz o direito ao ensino do aluno. O TCA, neste caso em concreto, vai longe demais: não só ultrapassa os limites que a suspensão da eficácia possibilita, como demonstra um excesso de zelo na tutela dos interesses do recorrente.


Joana Martins

                                              

(1) Acórdão nº 11391/02 de Tribunal Central Administrativo Sul, 06 de Junho de 2002
(2) Maria Fernanda Maçãs, “a suspensão jurisdicional da eficácia de actos administrativos”
(3) in “suspensão de eficácia de actos administrativos de conteúdo negativo”, págs. 107 e ss.



Relações jurídicas multilaterais - A Origem (Prequela)




Relações jurídicas multilaterais - a origem (Prequela)



A origem da concepção de relações jurídicas multilaterais surgiu através da necessidade de tutelar os efeitos da actuação da Administração que historicamente começou a tornar a sua actuação mais complexa e mais embrenhada no quotidiano da sociedade.

A Administração, fruto do seu poder de criação de actos administrativos, influenciava de uma forma directa aqueles que eram alvo destes actos, dando origem a uma concepção bilateral da relação jurídica administrativa, que encarava a Administração como agressora e, no extremo oposto, o particular, como o agredido.

A evolução, da Sociedade em geral, que tomou consciência da globalidade de certos problemas e, consequentemente e em particular, da Administração, que caminhou no sentido de um entrosamento mais complexo de direitos e deveres, alargando o seu espectro de actuação aos direitos subjectivos públicos, baseados em direitos fundamentais, tornou evidente que uma mera relação causa-efeito com dois pólos identificáveis não era suficiente para atender à crescente polarização de interesses.

Mais especificamente, foi através de acções de anulação de actos administrativos atributivos de direitos a particulares que se começou a ter a percepção de que a tal bipolarização de interesses não tutelava de forma suficiente os (vários) interesses dos  particulares.

A doutrina e a jurisprudência alemãs arrancaram com a discussão sobre a efectiva tutela dos vários interesses que eram afectados pela actuação da Administração, através da dogmática do acto administrativo de duplo efeito1 e do acto administrativo com efeitos em relação a terceiros2 

Reconhecendo-se assim que o acto administrativo pode afectar outros que não só o destinatário do acto, surge a necessidade de tutela das posições subjectivas dos particulares, para garantir uma protecção jurisdicional mais forte.

A Reforma Administrativa de 2004 veio importar para o ordem jurídica nacional, a ideia de origem germânica, da defesa dos direitos subjectivos do particular, abandonando-se em larga medida o posicionamento objectivista do acto administrativo. 

Para tutelar os direitos subjectivos dos particulares face à Administração, o juiz passa a ponderar, mais do que a ilegalidade intrínseca dos actos administrativos, os vários interesses em jogo, pronunciando-se verdadeiramente sobre o mérito da causa e superando a teoria do acto de duplo efeito, que concebe que o acto produz multiplicidade de efeitos, sem, no entanto, atender a direitos prévios à sua produção.

O entrosamento acima referido é evidenciado pela forma como a Administração — que prossegue o interesse público — pode afectar os interesses privados, através, por exemplo, das relações de vizinhança, onde um acto da Administração que tenha o intuito de conceder benefícios a certo arrendatário pode prejudicar os restantes arrendatários ou beneficiá-los de uma forma distinta.

Este tipo de situações é recorrente nas autorizações de construção3, em matéria de urbanismo ou ainda em matéria ambiental4, tal como exemplificado na publicação anteriormente feita, para onde também remetemos para explicar a consagração desta dogmática no Contencioso Administrativo Português.


João Francisco Sá
Aluno n.º 19669

Freitas, Dínamene, As Relações Administrativas Multilaterais, orientação de Prof. Doutor Sérvulo Correia, Lisboa, 2003
Jordão, Teresa, A Igualdade das Partes no Contencioso Administrativo (das relações jurídicas bilaterais às relações jurídicas multilaterais), orientação de Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva, Lisboa, 2005
Silva, Vasco Pereira, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 1998

Notas
1 Em alemão, Doppelwirkung

2 Em alemão, Drittwirkung

3 Sobre este exemplo, citando doutrina alemã, Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Administrativo Perdido, página 274

4 Ver Gomes Canotilho, Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Os Casos Especias nas Providências Cautelares



No artigo 120.º do Código do Procedimento Administrativo (doravante designado CPTA)[1] especialmente nas alíneas b) e c) e nº2 encontramos regulados os critérios gerais de concessão das providência cautelares. Todavia noutras disposições no CPTA, deparamos-nos com a situação em que são suprimidos alguns dos critérios gerais ou em que são acrescentados novos requisitos e até mesmo efeitos. Assim os regimes especiais encontram-se regulados no CPTA nas disposições particulares nos artigos 128.º a 134.º.º
No artigo 128.º está previsto os pedidos de suspensão de eficácia de actos administrativos (aparentemente) inválidos ou até (aparentemente) inexistentes.
Trata-se de uma providência especificada prevista na alinea a) do nº2 do artigo 112.
Determina o presente artigo sempre que estejamos perante uma providência de suspensão de eficácia de um acto administrativo e a Administração tenha tomado conhecimento da mesma, verifica-se um efeito suspensivo automático que se consubstancia na proibição da execução do acto administrativo, salvo se no prazo de 15 dias o orgão competente reconhecer mediante resolução fundamentada o prejuízo grave para o interesse público decorrente do diferimento da execução.
Deste modo parece que o escopo principal deste artigo é antes de mais evitar prejuízos decorrentes da demora do próprio processo cautelar.
De salientar que apesar de o artigo regular a suspensão de eficácios de actos administrativos não se aplica à previsão nº2 do artigo 50.º[2]
No artigo 129.º vem regulada também a suspensão de eficácia dos actos administrativos contudo dos actos já executados.
Esta disposição justifica-se pelo facto de a execução ainda não estar completamente consumada evitando-se assim a continuidade da execução e consequentemente pelo facto da pronúncia da suspensão ter efeitos retroactivos o que poderá constituir a entidade requerida a reconstituir provisoriamente a situação anterior que existia se o acto não tivesse sido executado.[3]
A providência em questão para além da verificação dos requisitos gerais da alínea b)[4] e nº2 artigo 120.º adiciona um outro requisito que seja demonstrada a utilidade relevante quanto aos efeitos que o acto ainda produza ou venha produzir.
Mas qual será a razão para acrescentar este requisito suplementar?
O sentido dessa disposição prende-se com o facto de que se o acto executado já tiver provocado todos os efeitos prejudiciais que poderiam advir do mesmo parece manifesto que não haverá interesse em requerer a providência faltando assim um pressuposto processual que será o interesse em agir.
O artigo 130.º prevê igualmente a suspensão da eficácia contudo referentes a normas, isto é, a regulamentos. Conforme os artigos precendentes expostos, o artigo em questão não dispensa os critérios do artigo 120.º conforme se verifica no nº4 do artigo 130.
É admtido o requerimento da providência em duas situações:
A primeira situação refere-se quando a providência seja requerida pelo interessado previsto no nº1 do artigo 130.
A segunda situação alude ao requerimento do Ministério Público ou por quem tenha legitimidade para o efeito nos termos do nº1 do artigo 73.º, isto é, quem tenha deduzido ou se proponha a deduzir pedido de declaração de ilegalidade dessa norma com força obrigatória geral.
 Quando não seja o Ministério Público, nos termos do nº3 do art.130.º o pedido dependerá da demonstração de que a aplicação da norma em causa foi recusada a aplicação em três casos concretos com fundamento na sua ilegalidade.
 Outro regime especial tipificado no CPTA é a providência relativa a procedimentos de formação de contratos prevista no artigo 132.º
A formulação do supracitado artigo surgiu na sequência da transposição da Directiva n.º 89/665/CEE[5], do Conselho, de 21 de Dezembro (denominada “Directiva recursos” ou “Directiva meios contenciosos”) e a Directiva n.º 92/13/CEE, do Conselho, de 25 de Fevereiro (conhecida por “Directiva Recursos sectores excluídos”.
A principal finalidade das directivas foi de evitar a criação de factos consumados durante o processo de contratação pública para que possa ser possível corrigir ou eliminar as ilegalidades antes da assinatura do contrato público.
Para atingir este fim foram criados dois mecanismos pela “Directiva Meios Contenciosos”
O primeiro mecanismo foi a adopção de uma clásula em que haja um prazo suspensivo obrigatório mínimo entre a decisão de adjudicação e a celebração do contrato, manifesto hoje no nº1 alínea a) do artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos.
O segundo foi a imposição de nalguns casos de mecanismos de efeito suspensivo automático decorrente da impugnação do acto de adjudicação.[6]
 A manifestação do conteúdo das directivas verifica-se no disposto no nº1 do artigo 132.º. Porém, determina o nº7 do artigo 132.º que o juiz poderá determinar a correcção da ilegalidade quando esteja em condições de decidir nos mesmos termos do artigo 121.º
De referir que o artigo132.º não cobre apenas os contratos abrangidos pelo âmbito de aplicação das Directivas, ou seja, os que estão previstos no artigo 100.º, inclui, no que se refere aos procedimentos de formação, todo o tipo de contratos.
Ao contrário das outras providências em que os critérios da alínea b) e c) artigo 120.º eram necessários, nas providências relativas à formação de contratos dispensam-se os requisitos do periculum in mora e fumus boni iuris[7] do modo que estão regulados nestes preceitos. Desta forma o periculum in mora apenas é concebido na medida que possa haver prejuízos devido à não adopção da providência que advenha da morosidade do processo e que possa a vir retir a utilidade da sentença.
A condição para concessão das providências cautelares previstas no nº6 do artigo 130.º refere-se à ponderação de interesses semelhantes ao do nº2 do artigo 120.º. A ponderação de interesses deverá ser atendida quando não seja manifesta a procedência da acção no termos da alínea a) do artigo 120.º.[8]
Por último aparece regulada no artigo 133.º a regulação provisório do pagamento de quantias. Trata-se de uma providência antecipatória.
A atribuição da providência está dependente de critérios especiais previstos nas várias alíneas do nº2 do artigo 133.º
Assim em primeiro lugar é preciso que seja demonstrado o periculum in mora, isto é a comprovada situação de grave carência económica e que seja de prever que o prolongamento dessa situação acarrete consequências graves e dificilmente reparáveis. Na alínea c) encontra-se a aparência de direito “ Seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.”
Quanto á ponderação de interesses é afastada desde logo na manifestação prevista na alínea a) na medida que o interesse meramente patrimonial da outra parte é assumido como não superior ao interesse do requerente que se encontra em grave situação económica.
Deste modo tentou-se explanar os diferentes critérios que estão previstos nos regimes especiais das providências cautelares demontrando que no universo das mesmas não são só concedidas com base nos critérios do perigo na demora, ponderação de interesses e aparência de bom direito existindo em alguma situações a supressão de alguns critérios e noutros o acréscimo de mais requisitos.

                                              Isabel Ribeiro
nº14126


[1] Os artigos que não fizerem referência à fonte legal serão todos do CPTA.
[2] Determina o artigo que perante uma impugnação de um acto administrativo para pagamento de quantia certa sem natureza sancionatória existe a suspensão de eficácia desse acto sempre que tenha sido prestada uma garantia por qualquer das formas previstas na lei tributária.
[3] Nesse sentido Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo
[4] Tratando-se de uma providência conservatória.
[5] Alterada pela Directiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Dezembro de 2007
[6] Gouveia, Paulo Pereira, (2012),” Meios Cautelares Hoje e Amanhã”. Cadernos de Justiça Administrativa, nº94
[7] Mário Aroso de Almeida, Manual de Procedimento Administrativo contra José Vieira de Andrade, Justiça Administrativa
[8] Assim Acordão TCA Norte, 2006/04/06,Processo 00373/05.9BECBR, www.dgsi.pt “Sem prejuízo da “evidência da procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal”, constitui critério de decisão das Providências Relativas a Procedimentos de Formação de Contratos a “ponderação de interesses segundo critérios de proporcionalidade” de acordo com o estabelecido pelo nº 6 do artº 132º do CPTA.”