Dualidade versus unidade no contencioso contratual da função administrativa
Existiram
dois momentos na passagem de uma noção processual para a substantivização do
conceito de contrato público:
1) No
início, era o poder administrativo. Os tribunais administrativos, enquanto
órgãos administrativos especiais, ao tempo da infância difícil do contencioso
administrativo, tinham por missão defender a Administração, isentando do
controlo judicial os respectivos actos de poder público;
2) No
segundo momento, o poder administrativo fez-se verbo. Poder-se-ia afirmar que a
dualidade esquizofrénica da contratação administrativa que começara por razões
de ordem prática e tinha consequências apenas processuais, deixa de ser somente
uma realidade recalcada ao nível do inconsciente para passar também a
manifestar-se de modo consciente. É o momento da construção doutrinária do
contrato administrativo, de tipo francês, como exorbitante, por corresponder a
privilégios exorbitantes da Administração.
Em
resultado desta evolução surge toda uma doutrina da contratação administrativa
marcada pela fragmentação da imagem do corpo. Por um lado, procura-se
justificar a divisão esquizofrénica do universo contratual, distinguindo os
ditos contratos administrativos dos ditos contratos de direito privado da
Administração, considerando os primeiros como correspondendo ao exercício de
privilégios exorbitantes ou de poderes especiais da Administração, que exigiam
um específico regime jurídico e os segundos como simples contratos em que as
autoridades administrativas, actuavam como simples privado, pelo que o regime
jurídico deveria ser identifico ao de qualquer outro contrato. A própria noção
de contrato administrativo é vista como um acordo de vontade, ou como um
negócio jurídico bilateral, celebrado entre a Administração e os particulares,
e como o exercício dos poderes unilaterais exorbitantes ou autoritários por
parte das autoridades públicas. O contrato administrativo é, pois, um conceito
bifronte que consegue ser, ao mesmo tempo, bilateral e unilateral, consenso de
vontades e supremacia de uma parte em face da outra, instrumento de cooperação
e mecanismo de sujeição.
A
separação esquizofrénica entre contratos administrativos e contratos de direito
privado da Administração tinha consequências de natureza substantiva e
processual. Do ponto de vista substantivo, considerava-se dever existir um
regime jurídico especial para os contratos administrativos e outro comum para
os demais contratos em que interviesse a Administração.
Os
contratos administrativos distinguir-se-iam dos demais em razão de critérios
autoritários daí decorrendo poderes especiais para a Administração, quer ao
nível da interpretação do contrato, quer ao nível da respectiva execução. Do
ponto de vista contencioso, a natureza do contrato administrativo implicava que
os litígios relativos à sua interpretação, validade ou execução fossem da
competência dos tribunais administrativos, enquanto que os contratos de direito
privado da Administração eram da competência dos tribunais comuns.
Tal
como explica Nigro, depois de velhas controvérsias sobre o contrato
de direito público, só agora começamos a considerar que os acordos relativos ao
poder não apenas são admissíveis, como diariamente praticados, tendo um único
limite a retractilidade do consenso por parte da Administração
Pública.
De
acordo com Maria João Estorninho, a cada vez mais generalizada
utilização de formas contratuais pela Administração Pública, enquanto modo
normal de exercício da função, ao lado de uma multiplicidade de outras formas
de actuação, vai dar origem a um movimento de sentido convergente, através do
qual se tem vindo a reconhecer que, nem o contrato administrativo é tão
exorbitante quanto isso, nem os contratos privados da Administração são
exactamente iguais aos celebrados entre particulares, o que reflecte desde logo
uma eventual aproximação entre todos os contratos da administração.
Esta
nova tendência no sentido da unidade de tratamento de toda a actividade
contratual da Administração Pública é, por um lado acção da doutrina e por
outro lado, do Direito Europeu.
Desde
muito cedo, se entendeu que a construção europeia implicava a existência de
regras comuns em matéria de contratação administrativa. Daqui resultou o
surgimento de múltiplas fontes de Direito Administrativo Europeu, privilegiando
a forma da Directiva, que estabelecem um regime comum da contratação pública,
tanto a nível substantivo e de procedimento como de processo (atenção ao Código
dos Contratos Públicos – DL 18/2008 de 29 de Janeiro).
O
CCP regula o contencioso pré-contratual, enquanto processo urgente, nos artigos
100º e ss, para além de consagrar um contencioso de plena jurisdição
respeitante aos litígios emergentes das relações contratuais administrativas,
seja pela via da acção comum, seja da especial.
A
criação de um verdadeiro Direito Europeu de Contratação Pública estabelece as bases gerais dos contratos da função administrativa em todos os países da
Europa. Trata-se de um regime jurídico comum europeu, estabelecido para certos
tipos de contratos, em razão da sua importância para o exercício da função
administrativa e independentemente da respectiva qualificação nacional ou para
determinados sectores da actividade, em razão dos fins prosseguidos de modo a
poder valer tanto para os ordenamentos dos países de matriz francesa, como os
da variante germânica, como ainda para os da “common law”. O que explica que a
matéria da contratação pública europeia seja delimitada, sobretudo, com base em
critérios materiais, tanto os relativos à natureza da actividade, como os
respeitantes aos fins prosseguidos.
Para
além da “integração vertical”, decorrente da aplicabilidade das fontes
comunitárias nas ordens jurídicas nacionais de cada um dos Estados europeus,
verifica-se ainda, neste domínio, um fenómeno de “integração horizontal”, que
consiste na convergência das administrações e das instituições nacionais, pois,
a partir do momento em que elas têm o dever de se harmonizar, isso faz com que
tendam também a convergir para um determinado modelo, daqui resultando que o
direito dos contratos das administrações públicas dos diferentes Estados tenda
a convergir para um modelo unitário (Cassese).
Existe
cada vez mais uma tendência para a unidade dos contratos que correspondem ao
exercício da função administrativa, quer do ponto de vista do direito
substantivo, como do procedimento ou do processo.
Em
Portugal, o fenómeno da europeização tem sido um importante eixo da
transformação do Direito Administrativo português da contratação pública. O
movimento unificador da contratação pública ditado pelo Direito Europeu,
manifestou-se primeiro na legislação relativa aos procedimentos pré-contratuais
e, depois, na legislação do contencioso administrativo, que eliminou, para
efeitos processuais, a categoria dos contratos administrativos (artigo 4º, nº1
alínea b), e) e f) do CPTA).
O
actual do CCP fica a meio-caminho entre a
adopção de um conceito genérico de contrato público, em sentido europeu, e a
manutenção da dualidade esquizofrénica originária. Por um lado, o legislador
estabelece pela primeira vez no Direito Administrativo nacional, uma disciplina
geral completa de todos os contratos em que intervém a administração, ao mesmo
tempo que uniformiza e simplifica a tipologia e a tramitação dos procedimentos
pré-contratuais e racionaliza o regime material a contratação pública. Por
outro lado, o CCP persiste em manter a dualidade conceptual esquizofrénica
entre contratos administrativos e outros contratos de administração (artigo 1º,
nº 1 do CCP), mesmo se a definição do dito contrato administrativo (artigo 1º,
nº 6) fornece argumentos para o esbatimento das fronteiras conceptuais ao nível
da totalidade da contratação pública, assim como alarga o respectivo âmbito,
que passa a incluir os contratos de aquisição de locação de bens e aquisição de
bens móveis e serviços (artigos 431º, 437º, 450º do CCP).
João Folgado, 19675
João
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