sábado, 15 de dezembro de 2012

O “Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”: o problema do contencioso contratual da função administrativa



Dualidade versus unidade no contencioso contratual da função administrativa

Existiram dois momentos na passagem de uma noção processual para a substantivização do conceito de contrato público:
1)       No início, era o poder administrativo. Os tribunais administrativos, enquanto órgãos administrativos especiais, ao tempo da infância difícil do contencioso administrativo, tinham por missão defender a Administração, isentando do controlo judicial os respectivos actos de poder público;
2)       No segundo momento, o poder administrativo fez-se verbo. Poder-se-ia afirmar que a dualidade esquizofrénica da contratação administrativa que começara por razões de ordem prática e tinha consequências apenas processuais, deixa de ser somente uma realidade recalcada ao nível do inconsciente para passar também a manifestar-se de modo consciente. É o momento da construção doutrinária do contrato administrativo, de tipo francês, como exorbitante, por corresponder a privilégios exorbitantes da Administração.

Em resultado desta evolução surge toda uma doutrina da contratação administrativa marcada pela fragmentação da imagem do corpo. Por um lado, procura-se justificar a divisão esquizofrénica do universo contratual, distinguindo os ditos contratos administrativos dos ditos contratos de direito privado da Administração, considerando os primeiros como correspondendo ao exercício de privilégios exorbitantes ou de poderes especiais da Administração, que exigiam um específico regime jurídico e os segundos como simples contratos em que as autoridades administrativas, actuavam como simples privado, pelo que o regime jurídico deveria ser identifico ao de qualquer outro contrato. A própria noção de contrato administrativo é vista como um acordo de vontade, ou como um negócio jurídico bilateral, celebrado entre a Administração e os particulares, e como o exercício dos poderes unilaterais exorbitantes ou autoritários por parte das autoridades públicas. O contrato administrativo é, pois, um conceito bifronte que consegue ser, ao mesmo tempo, bilateral e unilateral, consenso de vontades e supremacia de uma parte em face da outra, instrumento de cooperação e mecanismo de sujeição.

A separação esquizofrénica entre contratos administrativos e contratos de direito privado da Administração tinha consequências de natureza substantiva e processual. Do ponto de vista substantivo, considerava-se dever existir um regime jurídico especial para os contratos administrativos e outro comum para os demais contratos em que interviesse a Administração.

Os contratos administrativos distinguir-se-iam dos demais em razão de critérios autoritários daí decorrendo poderes especiais para a Administração, quer ao nível da interpretação do contrato, quer ao nível da respectiva execução. Do ponto de vista contencioso, a natureza do contrato administrativo implicava que os litígios relativos à sua interpretação, validade ou execução fossem da competência dos tribunais administrativos, enquanto que os contratos de direito privado da Administração eram da competência dos tribunais comuns.

Tal como explica Nigro, depois de velhas controvérsias sobre o contrato de direito público, só agora começamos a considerar que os acordos relativos ao poder não apenas são admissíveis, como diariamente praticados, tendo um único limite a retractilidade do consenso por parte da Administração Pública.

De acordo com Maria João Estorninho, a cada vez mais generalizada utilização de formas contratuais pela Administração Pública, enquanto modo normal de exercício da função, ao lado de uma multiplicidade de outras formas de actuação, vai dar origem a um movimento de sentido convergente, através do qual se tem vindo a reconhecer que, nem o contrato administrativo é tão exorbitante quanto isso, nem os contratos privados da Administração são exactamente iguais aos celebrados entre particulares, o que reflecte desde logo uma eventual aproximação entre todos os contratos da administração.

Esta nova tendência no sentido da unidade de tratamento de toda a actividade contratual da Administração Pública é, por um lado acção da doutrina e por outro lado, do Direito Europeu.

Desde muito cedo, se entendeu que a construção europeia implicava a existência de regras comuns em matéria de contratação administrativa. Daqui resultou o surgimento de múltiplas fontes de Direito Administrativo Europeu, privilegiando a forma da Directiva, que estabelecem um regime comum da contratação pública, tanto a nível substantivo e de procedimento como de processo (atenção ao Código dos Contratos Públicos – DL 18/2008 de 29 de Janeiro).

O CCP regula o contencioso pré-contratual, enquanto processo urgente, nos artigos 100º e ss, para além de consagrar um contencioso de plena jurisdição respeitante aos litígios emergentes das relações contratuais administrativas, seja pela via da acção comum, seja da especial.

A criação de um verdadeiro Direito Europeu de Contratação Pública estabelece as bases gerais dos contratos da função administrativa em todos os países da Europa. Trata-se de um regime jurídico comum europeu, estabelecido para certos tipos de contratos, em razão da sua importância para o exercício da função administrativa e independentemente da respectiva qualificação nacional ou para determinados sectores da actividade, em razão dos fins prosseguidos de modo a poder valer tanto para os ordenamentos dos países de matriz francesa, como os da variante germânica, como ainda para os da “common law”. O que explica que a matéria da contratação pública europeia seja delimitada, sobretudo, com base em critérios materiais, tanto os relativos à natureza da actividade, como os respeitantes aos fins prosseguidos.

Para além da “integração vertical”, decorrente da aplicabilidade das fontes comunitárias nas ordens jurídicas nacionais de cada um dos Estados europeus, verifica-se ainda, neste domínio, um fenómeno de “integração horizontal”, que consiste na convergência das administrações e das instituições nacionais, pois, a partir do momento em que elas têm o dever de se harmonizar, isso faz com que tendam também a convergir para um determinado modelo, daqui resultando que o direito dos contratos das administrações públicas dos diferentes Estados tenda a convergir para um modelo unitário (Cassese).

Existe cada vez mais uma tendência para a unidade dos contratos que correspondem ao exercício da função administrativa, quer do ponto de vista do direito substantivo, como do procedimento ou do processo.

Em Portugal, o fenómeno da europeização tem sido um importante eixo da transformação do Direito Administrativo português da contratação pública. O movimento unificador da contratação pública ditado pelo Direito Europeu, manifestou-se primeiro na legislação relativa aos procedimentos pré-contratuais e, depois, na legislação do contencioso administrativo, que eliminou, para efeitos processuais, a categoria dos contratos administrativos (artigo 4º, nº1 alínea b), e) e f) do CPTA).

O actual do CCP  fica a meio-caminho entre a adopção de um conceito genérico de contrato público, em sentido europeu, e a manutenção da dualidade esquizofrénica originária. Por um lado, o legislador estabelece pela primeira vez no Direito Administrativo nacional, uma disciplina geral completa de todos os contratos em que intervém a administração, ao mesmo tempo que uniformiza e simplifica a tipologia e a tramitação dos procedimentos pré-contratuais e racionaliza o regime material a contratação pública. Por outro lado, o CCP persiste em manter a dualidade conceptual esquizofrénica entre contratos administrativos e outros contratos de administração (artigo 1º, nº 1 do CCP), mesmo se a definição do dito contrato administrativo (artigo 1º, nº 6) fornece argumentos para o esbatimento das fronteiras conceptuais ao nível da totalidade da contratação pública, assim como alarga o respectivo âmbito, que passa a incluir os contratos de aquisição de locação de bens e aquisição de bens móveis e serviços (artigos 431º, 437º, 450º do CCP).

                                                                                                            João Folgado, 19675

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