sábado, 15 de dezembro de 2012

A intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias: um desígnio por cumprir?


I. A Constituição de 1976 e a inerente ruptura que assinalou com as compreensões jurídicas do Estado Novo levaram, desde logo e necessariamente, ao imperativo de um novo modelo para o Contencioso Administrativo. Todavia, a reforma plena do mesmo iria ser prorrogada de tal maneira que a sua concretização assumiu contornos quase sebastianistas: apesar da contínua evolução dos compromissos constitucionais relativos ao processo administrativo nas sucessivas revisões[1], seria só com a entrada em vigor do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, respectivamente em 2004 e 2002, que esta metamorfose se iria concluir[2]. De facto, só neste momento é que o novo Contencioso Administrativo sai do seu casulo, sob o impulso do legislador constitucional, que na revisão de 1997 plasma o princípio da tutela jurisdicional efectiva no artigo 268.º/4 CRP[3] no que para alguns foi uma verdadeira “revolução coperniciana”[4] do Contencioso Administrativo.  

II. A afirmação do princípio da tutela jurisdicional efectiva – também consagrado no artigo 2.º CPTA - implicou o abandono do modelo contencioso francês e o libertar das amarras do velho recurso de anulação, deixando ao dispor dos particulares um conjunto significativo de meios contenciosos através dos quais lhes seria possível defender os seus direitos ou posições jurídicas junto dos tribunais administrativos[5]. É assim seguro dizer que o Processo Administrativo deixa de ser apenas um contencioso de controlo da legalidade para se converter num contencioso de plena jurisdição. A concretização destes meios foi levada a cabo, como já se referiu, com a entrada em vigor do ETAF e do CPTA, sendo que no artigo 36.º/1 deste último se estabelece, a par com os processos ditos “normais”, um conjunto de tramitações de carácter urgente. E dentro destes processos “acelerados” é de salientar a intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias da alínea d), regulada nos artigos 109.º e seguintes. Esta figura levanta consideráveis questões quanto ao seu âmbito de aplicação, sendo que o presente texto se limita a apontar algumas delas e a reflectir criticamente sobre a sua preponderância e utilidade como processo principal urgente.

III. Com efeito, a intimação para os direitos, liberdades e garantias veio concretizar, no Contencioso Administrativo, a norma programática do artigo 20.º/5 CRP e que estatui: “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter a tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.” Mas não só: na verdade o legislador parece ter ido mais longe no cumprimento deste comando, originário também da revisão de 1997: com efeito através dele é possível obter com celeridade uma decisão de mérito na defesa de quaisquer direitos, liberdades e garantias e não apenas dos direitos, liberdades e garantias de carácter pessoal, incluindo dessa maneira os direitos fundamentais de natureza análoga e de acordo com a extensão do regime a estes estabelecida no artigo 17.º CRP[6]. Teríamos, desta forma, uma via privilegiada de defesa célere dos direitos, liberdades e garantias de considerável espectro, quando essa defesa implicasse uma acção ou uma omissão por parte da Administração ou a prática de actos administrativos, e quando ela se revele indispensável para assegurar o exercício em tempo útil do direito, liberdade e garantia em causa (109.º/1 e 3). A sua natureza de processo urgente implica, pois, especial relevância deste último requisito, já que sem a urgência da decisão para evitar a lesão ou inutilização do exercício do direito o particular deverá fazer uso dos processos normais: a acção administrativa comum ou especial, consoante os casos.

IV. Queda, todavia, um pressuposto de utilização desta intimação que lança sobre o seu âmbito de aplicação todo um nevoeiro de dúvidas: a lei exige que não seja possível ou suficiente, no caso concreto, o recurso ao decretamento provisório de uma providência cautelar nos termos do artigo 131.º - 109.º/1 in fine. Assim, parece existir entre o decretamento provisório de uma providência cautelar[7], que consiste numa composição provisória do litígio dependente de um processo principal, e a intimação para os direitos, liberdades e garantias - um processo principal urgente que culmina por isso numa decisão de mérito – uma relação de subsidiariedade na qual a intimação é subsidiária ao decretamento provisório da providência[8]. As razões por detrás desta subsidiariedade que aparenta ser no mínimo discutível[9] teriam de ser tratadas noutra sede. Por ora, o que releva é que parece haver uma concorrência no que refere à tutela de direitos, liberdades e garantias entre as providências cautelares[10] – e em particular os casos de decretamento provisório das mesmas que têm como pressuposto essa defesa – e a intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias: concurso esse que acaba por ser decidido pelo facto de a intimação ser subsidiária do decretamento provisório de uma providência cautelar. Esta constatação da concorrência entre os dois meios urgentes resolvida pela subsidiariedade redunda num estreitamento e indefinição do espaço próprio de aplicação da intimação: no fundo o particular só poderia recorrer a ela em situações em que fosse impossível ou insuficiente um decretamento provisório de uma providência cautelar – o que se afigura desde logo como um âmbito extremamente restrito. A doutrina na sua maioria tem enfrentado este óbice com a tese de que a intimação para a defesa dos direitos, liberdades e garantias teria como âmbito próprio e exclusivo as situações irreversíveis[11] e que por isso careceriam de uma tutela que além de célere teria de ser definitiva: os exemplos mais comumente dados destas situações são o da proibição (supostamente ilegal) da realização de uma manifestação aquando da visita de uma personalidade estrangeira ou a decisão de concessão ou não de tempo de antena a um partido político durante a campanha eleitoral. Esta construção tem o mérito de delimitar um âmbito próprio claro de aplicação para a intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias e que parece corresponder à sua razão de ser e ao seu posicionamento perante as providências cautelares como um processo principal urgente que como tal se destina a decidir definitivamente a causa. Todavia não é este o critério que resulta da lei, maxime do artigo 109.º/1: a intimação é, como já se referiu, subsidiária do decretamento provisório de uma providência cautelar e não de toda a tutela cautelar, o que significa que esse entendimento carece de apoio legal – no fundo em situações onde estão em causa direitos, liberdades e garantias o que permite a aplicação da intimação correspondente é apenas e tão só a urgência e a impossibilidade de recorrer a uma providência cautelar[12]. Parece ser um dos casos em que a intenção do legislador, apesar de correcta, não encontrou expressão adequada na lei – pois assim na mesma situação carecida de regulação urgente seria possível recorrer a uma intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias e a uma providência cautelar dita normal. Resta saber se seria admissível uma interpretação bastante benévola do artigo 109.º/1 que permitisse nessa referência entender qualquer providência cautelar e assim corrigir a expressão algo deficiente do legislador[13]: a resposta parece ser afirmativa como único meio legítimo de “salvar” a intimação para a defesa dos direitos liberdades e garantias de ser vetada a um espaço de aplicação obscuro e de fronteiras indefinidas e que em última análise poderia redundar no seu esquecimento enquanto meio processual por parte dos particulares.

V. Mas mesmo este âmbito próprio da intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias composto de casos de característica irreversibilidade e por isso carecidos de uma tutela urgente e definitiva não é exclusivo da mesma: com efeito o dispositivo previsto no artigo 121.º CPTA prevê que nas situações em que a regulação do litígio não se compadeça com uma simples providência cautelar seja possível, sob certos pressupostos, antecipar a decisão sobre a causa principal, convolando assim o procedimento cautelar em processo principal de carácter urgente. Efectivamente, tendo sido requerida a providência cautelar e estando por isso no âmbito do respectivo procedimento, o 121.º exige para a convolação o preenchimento de dois requisitos: um substantivo e outro processual[14]. O requisito substantivo exige que a “natureza das questões” colocadas e a “gravidade dos interesses envolvidos” levem a concluir por uma “manifesta urgência na resolução definitiva do caso” que por isso não se compadece com a composição provisória da providência cautelar; quanto ao requisito processual impõe a lei que “tenham sido trazidos ao processo todos os elementos necessários para o efeito”; isto é, para que uma decisão de mérito definitiva seja possível por parte do juiz – aquilo que no direito alemão corresponde ao Spruchreife[15] ou existência de matéria “madura” para uma decisão. É possível, assim, constatar que os exemplos dados de irreversibilidade de situações que não são compagináveis com a mera tutela cautelar podem, todavia, “nascer” em juízo como providências cautelares e mais tarde, preenchidos os competentes pressupostos, converter-se em processos de decisão definitiva do litígio. O que levanta um problema para o particular: numa situação de necessidade urgente de uma decisão definitiva que não se compadece com uma solução transitória[16] quanto à lesão ou exercício de direitos, liberdades e garantias qual o meio a utilizar? A intimação ou a providência cautelar convolada posteriormente em decisão final?

VI. Nestas situações efectivamente os dispositivos dos artigos 109.º/1 e 121.º estão em concurso[17], apesar de os seus âmbitos não serem totalmente coincidentes já que o do artigo 121.º é bastante mais lato - não sendo necessária para a sua aplicação a presença de direitos, liberdades e garantias. Considerando que a intimação estaria vocacionada para a tutela das posições de carácter jurídico-fundamental – pois tem como âmbito apenas o da tutela dos direitos, liberdades e garantias – Mário Aroso de Almeida vem defender a subsidiariedade do dispositivo do artigo 121.º relativamente ao do artigo 109.º e ss. - não se aplicando a intimação para direitos, liberdades e garantias poder-se-ia então recorrer à convolação da providência cautelar pelo 121.º[18]. Todavia, esta aplicação residual do 121.º face ao 109.º e ss. não resulta da lei em qualquer parte e, somando isso ao facto de da letra do 121.º/1 parece resultar que foi este o dispositivo que o Código quis como aparelho primário de solução destes casos[19], parece ser difícil aceitar esta posição do ilustre Autor – ainda para mais quando implica que o artigo 121.º só seria aplicável fora do domínio dos direitos, liberdades e garantias, diminuindo desta forma os meios de defesa dos particulares quanto à lesão das suas posições jurídico-fundamentais ou quanto ao seu exercício, sem qualquer habilitação legal para tal. Constatando, como se pressupôs desde início, que o recurso por um ou por outro dos meios não se traduz em diferenças significativas quanto à decisão definitiva ou quanto aos prazos e celeridade da mesma, Tiago Antunes defende que o critério de escolha entre a intimação do artigo 109.º e ss. e a providência cautelar posteriormente convolada em tutela final do artigo 121.º no domínio da defesa urgente e definitiva de direitos, liberdades e garantias deve partir do autor ou requerente quanto à solução que ele pretende no recurso à tutela judicial[20]: se tiver a certeza e for claro para ele que a única solução satisfatória das suas pretensões é efectivamente uma decisão definitiva então deverá fazer uso da intimação nos termos do artigo 109.º e seguintes; se pelo contrário subsistirem dúvidas quanto à natureza da decisão pretendida pelo autor ele deverá recorrer às medidas cautelares de acordo com o artigo 112.º, salvaguardando-se sempre a possibilidade, se se revelar necessária uma decisão irreversível, do exercício da faculdade do artigo 121.º por parte do juiz (sem esquecer o cumprimento dos requisitos nele exigidos). Todavia esta solução redunda a que, como o próprio Autor reconhece, a providência cautelar e a sua possível convolação em solução definitiva sejam mais garantísticas das pretensões e dos meios do autor, já que ao recorrer à tutela cautelar ele não preclude nenhuma alternativa[21]. O que significa que a estratégia processual de qualquer autor passará, inevitavelmente, pelo requerimento da providência cautelar – não se afigurando útil recorrer ab initio à intimação para defesa dos direitos, liberdades e garantias já que, em situações que se bastariam com a solução transitória do litígio em vez da decisão definitiva requerida, o juiz ver-se-á obrigado a absolver o requerido da instância, tendo o autor de promover ao início do competente processo cautelar.

VII. Todo este percurso feito pelos trilhos dos meios de defesa urgente de direitos, liberdades e garantias e que, como se viu, se desenvolvem de forma paralela, chegando por isso ao mesmo destino, serviu para deduzir algumas conclusões. Em primeiro lugar que a intimação, como se encontra concebida nos artigos 109.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aspirou a ser mais do que o cumprimento do comando constitucional dirigido ao legislador ordinário no artigo 20.º/5 CRP, alargando o seu âmbito para lá dos direitos, liberdades e garantias puramente pessoais e estendendo a sua tutela aos direitos análogos a estes. Todavia, com o desenvolvimento das medidas cautelares e do respectivo processo ela perdeu o seu espaço privilegiado de actuação: o princípio da tutela efectiva dos direitos dos particulares e as consequentes expansões dos meios de tutela urgente ao dispor dos mesmos ironicamente lançaram a intimação para os direitos, liberdades e garantias na confusão e na indefinição, perdendo (ou talvez nem sequer atingindo) o estatuto de paradigma da defesa das posições jurídico-fundamentais que constitucionalmente lhe havia sido prometido… Impõe-se, dessa forma, um exercício de reflexão sobre o verdadeiro papel que ela deve desempenhar como meio por excelência de defesa urgentes de direitos, liberdades e garantias, bem como o reposicionamento e clarificação inevitável dos âmbitos e fronteiras das diversas vias de reacção à lesão de direitos fundamentais no Contencioso Administrativo.


João Tilly




[1] Nesse sentido Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pp. 185 e ss.
[2] Sobre o tema e de forma exemplar vide Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, passim.
[3] Freitas do Amaral/Aroso de Almeida, ob. cit., pág. 16 e 17.
[4] Expressão da autoria de Vasco Pereira da Silva que, apesar de bastante arreigada numa perspectiva subjectivista do actual Contencioso Administrativo, é ilustrativa da relevância que a tutela dos particulares assume com a reforma ao posicioná-la no núcleo ou centro deste novo Processo Administrativo.
[5] Joana Sousa, O Contencioso Administrativo dos direitos, liberdades e garantias, passim.
[6] Ver, entre outros, Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, pp. 138 e 139 e Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, pp. 238 e 239.
[7] O 109.º/1 parte final refere especificamente o decretamento provisório regulado no artigo 131.º, o que significa que o preceito não se refere, como alguma doutrina já entendeu – a título de exemplo Vieira de Andrade, ob. cit., pág. 241 – a qualquer providência cautelar mas sim às providências decretadas provisoriamente.
[8] Neste sentido e abordando especificamente o problema Tiago Antunes, O “Triângulo das Bermudas” no Novo Contencioso Administrativo in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano: no centenário do seu nascimento, Vol. 2., pág. 716
[9] Pois se à partida a intimação apresenta um âmbito material muito mais restrito, só sendo accionável quando estejam em causa direitos, liberdades e garantias (109.º/1), do que o decretamento provisório da providência cautelar que pode ser suscitado não só nestas situações como em todas as outras de especial urgência – assim, Tiago Antunes, ob. cit., pág. 717 - então não se vê como é que o meio urgente de amplitude restrita é subsidiário no seu próprio âmbito de um meio de larga amplitude.
[10] Sendo que uma providência cautelar sem o respectivo decretamento provisório é sempre possível em situações onde estão em causa direitos, liberdades e garantias – desde que se “mostre adequada a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal” nos termos do artigo 112.º/1.
[11] Assim ensinam Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 240 e ss. e Mário Aroso de Almeida, ob. cit., pp. 141 e ss. que depois procede à distinção entre os casos de “irreversibilidade jurídica”, onde a atribuição de uma providência cautelar decide a questão de fundo e esvazia o processo principal (o caso da proibição da manifestação que para ter o efeito pretendido só poderá ocorrer em determinada data), e “irreversibilidade fáctica”, em que é a composição da situação por meio de uma providência que produz efeitos irreversíveis ou de complicada reparação – o exemplo dado é o de alguém que é admitido provisoriamente no Ensino Superior por meio de uma providência cautelar e conclui o curso na pendência do processo principal mas a sentença proferida no mesmo é de improcedência.
[12] Tiago Antunes, ob. cit., pp. 721-723.
[13] Solução propugnada por Tiago Antunes, ob. cit., pág. 725.
[14] Mário Aroso de Almeida, ob. cit., pp. 494 e ss.; Tiago Antunes, ob. cit., pp. 727 e 729.
[15] Mário Aroso de Almeida, ob. cit., pág. 495.
[16] Porque se esta solução transitória for suficiente então basta ao particular requerer a providência cautelar com decretamento provisório nos termos do 131.º.
[17] Tiago Antunes, ob. cit., pág. 731.
[18] Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, pág. 315.
[19] Como avança Tiago Antues, ob. cit., pág. 731.
[20] Ob. cit., pp. 732 e 733.
[21] Partindo do princípio – correcto, diga-se – de que a hipótese de convolação de uma intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias num processo cautelar, quando o réu optou pelo meio menos indicado já que uma composição provisória seria suficiente, não se afigura curial; pois para além de não encontrar qualquer apoio na lei parece desconsiderar o facto de as providências cautelares possuírem requisitos próprios: fumus boni iuris, periculum in mora e a ponderação de interesses, de forma geral – 112.º. Ora o autor de uma intimação para os direitos, liberdades e garantias não tem o ónus de demonstrar a existência de quaisquer destes elementos, o que significa que não estando eles presentes esta convolação de um processo principal urgente em procedimento cautelar afigura-se difícil, no mínimo – também neste sentido Tiago Antunes, ob. cit., pág. 735.

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