Introdução
Os arts. 25.º/2 do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 93.º do Código de Procedimento nos Tribunais Administrativos (adiante CPTA ou sem referência),
introduziu uma importante inovação no contencioso administrativo português,
prevendo a admissibilidade de reenvio prejudicial de questões para o Supremo
Tribunal Administrativo (STA) por parte do tribunal administrativo de círculo.
Trata-se da colocação à apreciação de um tribunal administrativo de círculo de
uma questão de direito nova, que suscite dificuldades sérias e possa vir a ser
suscitada noutros litígios. Se tal acontecer, pode o respectivo presidente
determinar que, em alternativa à intervenção no julgamento de todos os juízes
do tribunal de 1ª instância, se proceda ao reenvio prejudicial para o STA, para
que este emita pronúncia vinculativa no prazo de 3 meses[1].
Esta figura tem
inspiração francesa e comunitária. Em França, a figura do recours sur renvoi foi introduzida em 1987[2].
Justificação
Como relata AROSO
DE
ALMEIDA[3],
a raison d’être desta possibilidade
encontra-se explícita na Exposição de Motivos para a proposta de lei do CPTA: “para favorecer a qualidade das decisões dos
tribunais administrativos de círculo e alguma uniformidade na resolução de
diferentes processos sobre a mesma matéria permite-se que, cada vez que à
apreciação do tribunal administrativo de círculo se coloque uma questão de
direito nova, que suscite dificuldades sérias e possa vir a ser suscitada
noutros litígios possa-se (…) pedir ao STA, no âmbito de um reenvio prejudicial,
que este indique o sentido em que essa questão deve ser decidida.”
Aliás, diz AROSO
DE
ALMEIDA
que esta solução de reenvio prejudicial para o STA insere-se no conjunto de
opções que presidiram à redistribuição de competência entre os diferentes graus
da hierarquia da jurisdição administrativa[4] – sendo
que o novo ETAF inverteu o antigo sistema de pirâmide invertida, os tribunais
administrativos de círculo viram-se com competência para dirimir muitos mais
litígios. Assim, esta previsão de reenvio prejudicial, na qual o STA indicará o
sentido em que deverá ser resolvida uma questão de direito nova com
dificuldades sérias e que possa vir a ser suscitada noutros litígios, promove, assim,
a qualidade das decisões dos tribunais administrativos de círculo, ‘muitos
deles tribunais novos com juízes novos que aplicam regimes novos’,
prevenindo-se a emissão de decisões contraditórias.
Funcionamento
A apreciação liminar
dos pressupostos do reenvio cabe a uma formação de três juízes de entre os mais
antigos da secção de contencioso administrativo do STA.
Os três pressupostos
legais, como diz SÉRVULO CORREIA[5],
não conferem verdadeiramente uma discricionariedade de admissão:
- Tratar-se de uma
questão nova: resulta de uma verificação objectiva, i.e., que não haja constituído
ainda objecto de apreciação directa pelo STA ou mesmo por dois ou mais acórdãos
de tribunais administrativos de círculo ou tribunais centrais administrativos,
o que se coaduna com as finalidades que presidiram à introdução da figura
(prevenção de recursos dispensáveis, aceleração e unificação da jurisprudência
administrativa, etc.) Assim, a questão
não será nova se já tiver sido objecto de pronúncia de tribunais superiores
suficientemente esclarecedora sobre esse original problema de direito.
- Existência de
dificuldades sérias: só se poderá dar por assente quando se desenhem em
alternância respostas de nenhuma das quais seja evidente a improcedência.
- Possibilidade da
questão se vir a suscitar noutros litígios: resultará de uma análise objectiva
do carácter repetível ou irrepetível da conjugação dos seus elementos
essenciais
- A questão não deverá
ser de escassa importância. Como alerta SÉRVULO
CORREIA,
apesar de todos os critérios supramencionados deverem ser objecto de um grau
significativo de objectividade na sua análise, isso ‘não indica que o
legislador tenha pretendido afastar toda a discricionariedade no facultar do acesso
do reenvio’. Assim, o nº 3 do art. 93.º
permite a rejeição liminar, também a título definitivo, quando se considere que
a escassa relevância da questão não justifica a emissão de uma pronúncia, a par
com o não preenchimento dos pressupostos[6].
O STA confirmou todos
esses requisitos em Acórdão proferido a 19 de Novembro de 2008,
acrescentando-lhes o requisito da não-urgência do processo[7].
Quem suscita a
questão será o presidente do tribunal. Para SÉRVULO
CORREIA [8],
o facto da questão do reenvio ser decidida pelo presidente do tribunal
administrativo de círculo e não pelo juiz ou juízes da causa. Ainda que o
presidente seja um magistrado do mesmo tribunal, ele não é o juiz da causa,
podendo essa faculdade configurar uma afectação da garantia objectiva de que
nenhuma manipulação alheia a previsão normativa geral e abstracta possa afectar
a distribuição do exercício do poder jurisdicional entre juízes concretos.
Os
Efeitos da Pronúncia e a Questão da Sua Constitucionalidade
Qual a natureza da
decisão do STA?
Nos termos do art.
93.º/1, a pronúncia que o STA profere é vinculativa, i.e., o tribunal
administrativo de círculo fica obrigado, na aplicação das normas aos factos
submetidos a julgamento, a interpretar a norma ou normas a que se referiu o
reenvio prejudicial com o sentido que o STA lhes atribuiu. Caso contrário,
violará o art. 93.º/1, podendo a decisão ser impugnada com base neste
fundamento.
AROSO
DE
ALMEIDA
ainda refere que, caso o tribunal administrativo de círculo acate com a
interpretação do STA, se a decisão desse tribunal for impugnada perante um tribunal
central administrativo, com fundamento na incorrecção da interpretação, o
recurso não terá provimento pois a decisão do primeiro tribunal não poderá ser
censurada, já que ele estava vinculado pelo art. 93.º/1 a seguir a
interpretação do STA[9].
Os efeitos desta
pronúncia são o principal ponto de
divergência entre o regime português e o francês no qual se inspirou. Enquanto
o legislador francês ditou que, quando o Conseil
d’État se confronte com um reenvio, ele não profere uma decisão
vinculativa, pois se o tribunal inferior é livre de suscitar questão é livre de
seguir ou não a tomada de posição do tribunal supremo, sendo mais um parecer do
que outra coisa, apesar da dificuldade prática que os tribunais inferiores
franceses têm em desconsiderar esse ‘parecer’ do Conseil d’État, que reveste uma autoridade que dificulta em muito
essa desconsideração[10].
SÉRVULO
CORREIA[11]
duvida da constitucionalidade do preceito, por poder pôr em causa a
independência dos tribunais (art. 203.º CRP). Enquanto que, como já vimos, em
França a independência do tribunal inferior perante o superior é mantida
intocada (pelo menos formalmente), entre nós, não. O autor enfatiza que o
princípio da independência dos tribunais funciona também para as relações entre
os tribunais, que é preservada mesmo em recurso, pois aí, apesar do tribunal
inferior ter de obedecer às decisões dos tribunais superiores proferidas em
recurso, tanto esse como o tribunal superior apreciaram o caso no exercício da
sua competência própria em razão da hierarquia. No reenvio a questão é mais
problemática pois o tribunal superior realiza uma ingerência no exercício da
função jurisdicional própria do tribunal inferior e faz uma ‘apropriação’[12] de uma
das partes dos poderes de decisão deste último.
Apesar de não pôr de
parte a inconstitucionalidade deste efeito, SÉRVULO
CORREIA
acaba por deixar dúvidas, nomeadamente porque nunca foi suscitada a questão da
constitucionalidade do processo das questões prejudiciais no âmbito do Direito
da União Europeia (art. 267.º TFUE), apesar de se perfilhar a ideia de que este
processo das questões prejudiciais é mais um processo de cooperação entre
juízes do que propriamente de dependência[13]. Sendo
assim, acho por bem transpôr essa lógica para o reenvio prejudicial consagrado
no CPTA – não se trata de uma relação de dependência, até porque este reenvio
prejudicial é facultativo, mas antes de cooperação e colaboração entre o STA e
os tribunais inferiores subitamente investidos de uma competência muito maior - assim creio que, se à semelhança do processo das questões prejudiciais do art. 267.º TFUE, nós virmos o reenvio prejudicial do art. 93.º CPTA como um meio processual que estabelece uma relação de colaboração entre STA e tribunais inferiores do que uma ingerência do primeiro na competência dos últimos, o que seria manifestamente inconstitucional.
Por fim, há também que referir que o art. 93.º/4 não
é totalmente claro quando delimita o âmbito da vinculatividade da pronúncia, dizendo que aquela não
vincula o STA relativamente a novas pronúncias que venha a emitir sobre a mesma
matéria. Diz SÉRVULO CORREIA
que esta norma acaba por ser uma forma de afastar a técnica do precedente
judicial, questionando se, depois se for interposto recurso da decisão do
tribunal administrativo de círculo, se deve entender que a pronúncia
anteriormente feita deve ter força de caso julgado nesse eventual recurso,
entendo posteriormente que sim, sob pena de contradição entre a pronúncia
relativa ao reenvio e a relativa ao recurso[14] e
eventual distorção da ratio deste
instituto – a aceleração da feitura uniformizada da justiça administrativa.
[1] SÉRVULO CORREIA, J.M., Direito do Contencioso Administrativo,
Lex, Lisboa, 2005, p. 689
[2] DEBBASCH, Charles, RICCI,
Jean-Claude, Contentieux Administratif,
8ª Edição, Dalloz, Paris, 2001, pp. 888 ss
[3] AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de Processo Administrativo,
Almedina, Coimbra, 2012, p. 403
[4] AROSO DE ALMEIDA, op. cit., p. 404
[5] SÉRVULO CORREIA, op. cit., pp. 698-699
[6] SÉRVULO CORREIA, op. cit., p. 699
[7] Ac. STA de 19/11/2008, Proc.
nº 0942/08 (SANTOS BOTELHO), in http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/a48f56ad361ffcec8025750d004273d2?OpenDocument&ExpandSection=1
: “A admissibilidade do pedido de reenvio
está dependente da verificação dos seguintes pressupostos.
a) Não pode tratar-se de processo urgente;
b) Terá de estar em causa a apreciação de uma questão de direito nova que suscite dificuldades sérias;
c) Que a dita questão possa repetir-se noutros processos, e, finalmente;
d) Que tal questão não se assuma como de escassa relevância.”
a) Não pode tratar-se de processo urgente;
b) Terá de estar em causa a apreciação de uma questão de direito nova que suscite dificuldades sérias;
c) Que a dita questão possa repetir-se noutros processos, e, finalmente;
d) Que tal questão não se assuma como de escassa relevância.”
[8] SÉRVULO CORREIA, op. cit., p. 701
[9] AROSO DE ALMEIDA, op. cit., p. 405
[10] DEBBASCH, RICCI, op. cit., p. 164: “La réponse du Conseil d'État est qualifiée d'avis et non d'arrêt, pour
échapper à la prohibition des arrêts de règlement, elle n'est donc pas
obligatoire pour la jurisdiction qui l'a saisi mais l'on conçoit mal la mise en mouvement d'une telle procédure pour
rien.”
[11] SÉRVULO CORREIA, op. cit., p. 700
[12] SÉRVULO CORREIA, op. cit., idem
[13] cfr. FAUSTO DE QUADROS, GUERRA
MARTINS, Ana, Contencioso da União
Europeia, 2ª Edição, Almedina, 2009, pp. 52 ss
[14] SÉRVULO CORREIA, op. cit., p. 701
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