sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Os Três Sacramentos do Contencioso Administrativo

Os Três Sacramentos do Contencioso Administrativo – Parte I


 O Contencioso Admnistrativo padece de vício que o acompanha desde tenra idade. Pecou e tenta redimir-se por sacramentos ao longo da sua expansão. Pecou e baptizou-se, crismou-se e resta-nos um último sacramento.
  Comecemos com o pecado original. A maçã do pecado, a serpente é tentadora, convida a administrar e julgar, pelo que se administra e julga.
 Situamo-nos. Historicamente Revolução Francesa, agitadora social e política de uma Europa fragmentada. Prega-se a separação de poderes que engana na denominação já que não os dissocia mas confunde. Três poderes distintos entre si mas fatalmente reunidos. A noção de Estado pauta o dilema, diz-nos de onde parte este Contencioso que é pecador. Um Estado Leviatã, colosso e omnipotente cria-o. VASCO PEREIRA DA SILVA cita HENKE: “jurisdição administrativa é vista como instância de controlo do sistema de formação da vontade do Estado e não como verdadeiro tribunal”. A isto se subsume o idealismo administrativo do pensamento termidoriano. Este foi um Contencioso especial, criado. E ainda MONTESQUIEU: “ juízes são as bocas que pronunciam as palavras da lei" ( Les juges « ne sont que la bouche qui prononce les paroles de la loi, des êtres inanimés qui n'en peuvent modérer ni la force, ni la vigueur») , sem qualquer poder.
 Estamos a anos-luz do iurisprudens romano, e ainda assim apenas com um milénio e três quartos de avanço que tornam o juiz no fantoche da lei e da política.
  Neste contencioso administrativo agrupam-se heranças do Antigo Regime com criações e princípios base do ideal revolucionário num grande bolo jus-histórico-político. Mas, como sempre acontece que se leva muita bagagem, fica algo pelo caminho. Desta vez foi apenas a justiça. Onde inserir o problema? Quiçá no modelo Administrativista referidos por VIEIRA DE ANDRADE, haveria ainda, se bem que disfarçada, a desconfiança perante o poder judicial. Esquecemos os particulares que foram também então esquecidos, através de uma fase de desconsideração do indivíduo como sujeito de relações jurídicas administrativas camufladas por caracterizações patéticas [salvo o devido respeito] de direitos subjectivos objectivos, ou o direito subjectivo público, conforme o autor. De volta ao Contencioso, num Direito Administrativo emergente em que, preso por cordão umbilical, temos o acto administrativo. Assimilado à sentença judicial, dizia OTTO MAYER que representavam a eficácia do poder público.
 É o princípio da redenção.
 Baptiza-se assim o Contencioso Administrativo, ou jurisdicionaliza-se. Inicia-se este lento sacramento com uma passagem do Estado Liberal ao Social. O Contencioso não é mais visto como uma realidade, mercê do circunstancialismo histórico e social, mas sim como ocupante de um verdadeiro lugar na ordem jurídica.
 Nessa transição, os tribunais administrativos deixam de representar jurisdição privativa da administração pública, convertendo-se em jurisdição especializada no tratamento de questões do direito administrativo. Também o Contencioso se vai paulatinamente autonomizando do poder administrativo, não se operando, contudo, tal transformação em momento único e imediato, antes acompanha a passagem de Estado Liberal a Social e incorpora as mudanças que comporta.
 A “redenção” produz-se de forma diferente pela Europa, de forma mais fácil que no país da sua génese (França). Começa a sentir-se aproximação do sistema continental e britânico. Em Portugal, chega atrasado, acompanhado do sacramento seguinte: o Crisma, ou a Confirmação. Isto porque a Constituição de 1933 tinha adoptado o sistema de Justiça delegada (citamos VIEIRA DE ANDRADE: modelo “em que a resolução de litígios referentes à administração, por não ser substancialmente estranha à função jurisdicional, cabe às autoridades judiciárias”). É visto como modelo intermédio, tanto temporal como culturalmente, em Portugal.
 E como o Contencioso não é indiferente à erosão dos tempos, acompanha o aprofundamento da Noção de Estado que o impulsiona. Mais, e se chegamos à passagem teórica para o Estado Social, de que forma lhe modelam o crescimento, as características, os domínios sociais económicos? Terá então maturidade suficiente para se Crismar, exarar os vícios que comporta desde antes da sua criação?

 Tudo isto e mais, na Parte II deste post.
 MARGARIDA D’OLIVEIRA MARTINS


 Bibliografia:
 - José Carlos Vieira de Andrade – A Justiça Administrativa (Lições), 9ª Edição
 - Montesquieu – L’Esprit des Lois
 - Vasco Pereira da Silva – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Contestação à Petição Inicial movida pela Empresa "Estamos-nas-Lonas, S.A."

Caros colegas, Junto remetemos a Contestação à Petição Inicial. Contestação à Petição Inicial Melhores cumprimentos, Beatriz Santos, Inês Mendes, Mariana Branco, Marta Pratas, Raquel Fanha e Rita Camilo

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Legitimidade na Acção administrativa especial de Impugnação de Normas


Artigo 73.º do Código de Processo Tribunais Administrativos:
“1. A declaração de ilegalidade com força obrigatória geral pode ser pedida por quem seja prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo, desse que a aplicação da norma tenha sido recusada por qualquer tribunal, em três casos concretos, com fundamento na sua legalidade.
2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, quando os efeitos de uma norma se produzam imediatamente, sem dependência de um acto administrativo ou jurisdicional de aplicação, o lesado ou qualquer entidade referida no nº 2 do artigo 9º pode obter a desaplicação da norma pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto.
3. O Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das entidades referidas no nº 2 do artigo 9.º, com a faculdade de estas se constituírem como assistentes, pode pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, sem necessidade da verificação da recusa de aplicação em três casos concretos a que se refere o nº 1.
4. O Ministério Público tem o dever de pedir a declaração com força obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma com fundamento na sua ilegalidade.(..)”

Trata-se da norma que regula a legitimidade activa em sede de acção de impugnação de normas administrativas, entende a doutrina que o conceito de norma administrativa tem de ser aqui entendido em sentido amplo, de modo a abranger todas as disposições administrativas que tenham efeitos gerais e abstractos[1], por isso, há quem fale neste âmbito no conceito de regulamento administrativo [2].
No respeito à legitimidade activa, há que reconhecer que estamos perante várias situações distintas:
·         Em primeiro lugar cabe referir a regra geral de legitimidade (presente no art. 73.º/1 CPTA): quem alegue ser (ou poder vir a ser de forma previsível) prejudicado pela aplicação da norma pode pedir a declaração de ilegalidade da norma com força obrigatória geral, desde que existam três casos concretos em que o tribunal desaplicou aquela mesma norma. Esta disposição concede aos particulares que se considerem lesados, a possibilidade de impugnarem a norma administrativa.
·          O particular pode ainda interpor esta acção, havendo apenas lugar à declaração de ilegalidade com efeitos no caso concreto, se se estiver perante uma norma exequível por si mesma, ou seja, cuja produção de efeitos não dependa de um acto administrativo ou judicial de aplicação[3] (art. 72.º/2 CPTA).
·         Ainda no caso em que se trate de uma norma exequível por si mesma, pode o actor popular (o mesmo é dizer, as entidades referidas no art. 9.º/2 CPTA), propor a acção de impugnação da mesma, embora a declaração de ilegalidade apenas tenha efeitos no caso concreto (art. 72.º/2 CPTA).
·         O Ministério Público poderá propor que a norma seja declarada ilegal, fazendo-o por sua própria iniciativa ou a pedido de alguma das entidades do art. 9.º/2 CPTA (entidades estas que podem constituir-se assistentes do Ministério Público) com força obrigatória geral, sem que tenha de verificar-se o requisito de prévia desaplicação em três casos concretos. Note-se que, de acordo com o disposto no art. 73.º/4 CPTA, impende sobre o ministério público o dever de propor esta acção sempre que tenha conhecimento que uma norma foi desaplicada em três casos concretos.

A doutrina discute a bondade desta solução, havendo várias posições. O professor Vieira de Andrade considera que o regime “assegura a protecção plena dos titulares de direitos e interesses legalmente protegidos ao nível do caso concreto[4] e nessa medida concretiza a exigência constitucional presente no art. 268.º/5 da Constituição da República Portuguesa, embora o Professor reconheça que poderão haver situações em que se justificaria a pronúncia de uma sentença com força obrigatória geral ainda com vista a proteger os interesses dos particulares. De todo o modo, este Autor reconhece que a pronúncia de ilegalidade de uma norma com força obrigatória geral é concebida pelo legislador como uma questão de interesse público.
Posição diferente tem o Professor Vasco Pereira da Silva, que critica vários aspectos deste regime. Desde logo, o Autor estranha a contraposição entre a posição do particular, a do ministério público e do actor popular, pois este último é equiparado ao particular e não ao Ministério público, o que não faz sentido já que o actor popular actua para a defesa da legalidade e do interesse público, sendo portanto a sua posição mais parecida com a do Ministério Público pelo que faria sentido terem um regime de legitimidade semelhante. Além disto, o autor refere que é contraditório restringir a legitimidade do actor popular mas simultaneamente permitir que este peça a intervenção do ministério público, podendo vir a constituir-se como assistente, pois não obstante ser restringida a legitimidade para a proposição da acção ao actor popular, permite-se a sua intervenção como assistente, facultando-lhe a oportunidade de ir ao processo defender o interesse público, cuja defesa está já assegurada pela intervenção do ministério público. Seria mais razoável, de acordo com a visão do professor que se atribuísse ao particular este papel, e é por isso que ele propõe que se faça uma interpretação correctiva do art. 72.º/3 CPTA a fim de alargar ao particular a possibilidade de se constituir como assistente do ministério público[5].
      Vasco Pereira da Silva considera que nesta matéria o CPTA estabelece um tratamento desfavorável para os particulares, pois estes vêm a sua possibilidade de agir condicionada ao requisito prévio de terem já havido três casos em que a norma foi desaplicada, ou ao facto de a norma ter um efeito que se repercute na sua esfera jurídica, ficando fora destas situações todas as outras em que, havendo um acto administrativo lesivo de direito do particular, nada se pode fazer quanto ao regulamento administrativo que lhe deu origem[6]. Ora, em face do disposto no art. 268.º/5 CRP que autonomiza o direito fundamental de impugnação de normas jurídicas deveria haver outra solução.
                A matéria em análise põe em confronto os direitos dos particulares face à administração pública, não obstante a protecção dos particulares ser um aspecto muito importante que o contencioso administrativo deve prosseguir, há também que olhar para o “reverso da moeda” o que implica reconhecer que aumentar a legitimidade nesta acção equivalerá a permitir que se impugnem normas que são gerais e abstractas, e isso pode ser perigoso, pois tem de haver uma certa estabilidade na ordem jurídica com a qual não se coaduna a abertura total da legitimidade na acção de impugnação de normas. De todo o modo, deve procurar-se uma solução que satisfaça os interesses em presença, conseguindo-se um certo equilíbrio.




[1] Vide, Vieira de Andrade, José; “A Justiça Administrativa (Lições)”; pág. 211.
[2] Vide, Silva, Vasco Pereira da; “Verde Cor do direito – Lições de Direito do Ambiente”, págs. 179 e 180.
[3] Vide, Vieira de Andrade, José; “A Justiça Administrativa (Lições)”; pág. 213.
[4] Vide, Vieira de Andrade, José; “A Justiça Administrativa (Lições)“; pág. 213.
[5] Vide, Silva, Vasco Pereira da, “O contencioso administrativo no divâ da psicanálise”, pág. 419.
[6] É o caso de um particular que pede a concessão de uma licença de construção e vê o pedido indeferido com base no Plano Director Municipal, que considera padecer de ilegalidade, mas nada poderá fazer quando à impugnação do regulamento.

Mariana Gameiro Branco, nº 19752

sábado, 24 de novembro de 2012

A Legitimidade Ativa na Impugnação de Atos Administrativos – Análise de um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo – MULHERES EM AÇÃO


O Código de Processo nos Tribunais Administrativos assume a legitimidade como um pressuposto processual, o qual, no dizer de Mário Aroso de Almeida (in “Manual de Processo Administrativo”), “não se reporta, em abstrato, à pessoa do autor ou do demandado, mas afere-se em função da concreta relação que (alegadamente) se estabelece entre as partes e uma concreta ação, com um objeto determinado”.
O CPTA começa por regular na sua parte geral, separadamente, a legitimidade ativa (art.º 9.º) e a legitimidade passiva (art.º 10.º), sendo que, quanto à primeira, volta a estabelecer regras no artigo 40.º (em matéria de ações relativas a contratos) e no âmbito das ações administrativas especiais (art.º 55. e 57.º, a propósito da impugnação de atos administrativos; 68.º, a propósito da condenação à prática de ato devido e 73.º, a propósito de impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão).
Em regra, possui legitimidade ativa quem alegue a titularidade de uma situação cuja conexão com o objeto da ação proposta o apresente como em condições de nela figurar como autor. Este pressuposto não se confunde com o interesse processual ou com o interesse em agir. Em segundo lugar, no n.º 2 do art.º 9.º encontra-se estabelecida a chamada legitimidade para defesa de interesses difusos.
Conferindo desenvolvimento ao art.º 9.º, no contexto da impugnação de atos administrativos, o art.º 55.º, n.º 1, consagra a legitimidade: a quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal (designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos); ao Ministério Público; às pessoas coletivas públicas e privadas, quanto aos direitos que lhes cumpra defender; aos órgãos administrativos, relativamente a atos praticados por outros órgãos da mesma pessoa coletiva; aos presidentes de órgãos colegiais, em relação a atos praticados pelo respetivo órgão, bem como outras autoridades, em defesa da legalidade administrativa, nos casos previstos na lei; às pessoas e entidades mencionadas no n.º 2 do art.º 9.º (qualquer pessoa, associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público).
Como se vê, o CPTA admite que as pessoas coletivas têm legitimidade para impugnar atos administrativos quanto aos direitos e interesses que lhes cumpra defender. Conforme preconiza Mário Aroso de Almeida, “para que a impugnação se inscreva nas incumbências de uma pessoa coletiva pública, é necessário que o ato impugnado contenda com os interesses legalmente estabelecidos como atribuições dessa pessoa coletiva”; por outro lado e de acordo com o mesmo autor, o CPTA, ao reconhecer também às pessoas coletivas privadas legitimidade para impugnarem atos administrativos, “visa consagrar de modo expresso a possibilidade de as associações de qualquer tipo (o que inclui associações políticas, sindicais e patronais) atuarem, no respeito do princípio da especialidade, em defesa dos direitos e interesses dos seus associados”.
Em estreita ligação com o n.º 2 do art.º 9.º, o art.º 55.º, n.º 1, alínea f) vem reafirmar a legitimidade das pessoas e entidades mencionadas naquele preceito para impugnarem atos administrativos que ponham em causa os valores referidos nesse preceito, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
Bem ilustrativo da problemática do reconhecimento da legitimidade ativa, no âmbito do art.º 55.º do CPTA, é o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, relativo ao Processo n.º 0107/07, de 17-5-2007. Neste aresto é assinalado que a legitimidade ativa de uma associação ou fundação pode filiar-se nas alíneas a), c) ou f) do n.º 1 do art. 55º do CPTA. Porém, como evidencia o STA, a legitimidade ativa de uma associação, fundada nas alíneas c) ou f), só existirá na justa medida em que atue na defesa dos interesses, bens ou valores que se insiram no seu objeto social, no cumprimento das finalidades e objetivos para que foi constituída (alíneas c) e f) do n.º 1 e art.º 9, n.º 2, do CPTA). 
Ora, estando em causa a impugnação de um ato administrativo praticado pelo Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED), pelo qual foi autorizada a introdução no mercado de um determinado medicamento.
A impugnante (a Associação Mulheres em Ação) alegava que esse medicamento poderia ser nefasto para a saúde das mulheres e que ao agir atuava na defesa da sua saúde, e logo, também, na salvaguarda da saúde pública invocando o disposto nos art.ºs 55, n.º 1, alíneas c) e f), remetendo esta para o n.º 2 do art.º 9, todos do CPTA.
O STA sublinhou que a legitimidade ativa (isto é, o interesse em demandar face à causa de pedir invocada) da autora, como titular de interesses individuais ou coletivos ligados ao fim estatutário, ou como autora popular, titular de um interesse difuso  - no caso das pessoas coletivas privadas, está relacionada com os direitos e interesses que lhes cumpra defender (alínea c)) ou com a defesa dos interesses em causa (alínea f) que remete para o art.º 9, n.º 2). Sublinhou ainda que os termos da lei referidos no n.º 2 do art.º 9 remetem para a Lei n.º 83/95, de 31.8 (LAP), que trata, em termos gerais, do "Direito de participação procedimental e de acção popular", cujo o art.º 3, alínea b) exige, como requisito da legitimidade ativa das associações, que incluam "expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate". Citando o referido acórdão, “legislador quis significar que cada associação ou fundação apenas tem legitimidade para agir como autora na defesa dos interesses, bens ou valores que se insiram no seu objecto social, no cumprimento das finalidades e objectivos para que foi constituída”. Como bem refere Esteves de Oliveira, citado no referido acórdão: "A legitimidade das fundações e associações cinge-se aos litígios respeitantes aos bens e valores constitucionais para cuja defesa se constituíram por força de um natural princípio da especialidade - e no caso de serem de âmbito local, aos bens e valores aí situados".

O STA considerou que a Associação de Mulheres em Ação, que tem como escopo ”A eliminação da discriminação e a promoção da igualdade entre homens e mulheres”, não tinha legitimidade ativa. Efetivamente, a fundamentação da legitimidade ativa num direito que vise a defesa da saúde pública (a saúde da mulher) constitui um valor constitucional que não se insere no objeto social daquela associação, ou seja, no conjunto de direitos e interesses que lhe cumpre defender. 
Concluindo, apesar de a possibilidade de as pessoas coletivas serem consideradas parte legitima nas ações para impugnação de atos administrativos, essa possibilidade não é irrestrita.



Marta Pratas, nº18296 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Petição Inicial

Está finalmente pronta a Petição Inicial que dará começo à Simulação de Contencioso Administrativo na Subturma4!

Deixamo-la no blog neste formato; mas ela ficará também disponível no e-mail de Subturma em PDF.

Bom Fim-de-Semana a todos!

Petição Inicial (Anthony Meira, António Rolo, João Sá, João Tilly e José Coimbra - Subturma4)

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Condenação à prática de acto legalmente devido com discricionariedade (conteúdo da sentença)


 
Antes de nos referirmos ao contudo da sentença da condenação à prática de acto legalmente devido, importa, antes de mais, fazer referência à acção em si. Com a acção de condenação à prática de um acto legalmente devido pretende-se a condenação da entidade competente para a prática do acto que foi ilegalmente omitido, dentro de um certo prazo[1]. Por sua vez, o acto que o particular considera devido é aquele que, segundo o autor, deveria ter sido emitido e não o foi, quer porque houve uma omissão, quer porque foi praticado o acto, mas não satisfez a pretensão do particular[2] (contudo, tenha-se em atenção que para o Professor Vasco Pereira da Silva, o objecto do processo não é um acto administrativo, mas antes o direito do particular a uma determinada actuação da Administração[3]).

Especificamente, quanto ao conteúdo da sentença, coloca-se a questão de saber se esta pode conter uma solução discricionária. O artigo 71.º/2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (doravante C.P.T.A.) “responde” concretamente a essa dúvida, ao dispor que “o tribunal não pode determinar o conteúdo do acto a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido. Deste modo, as sentenças de condenação na prática de acto legalmente devido podem apresentar diversos conteúdos, pois, são várias as situações em que a Administração é obrigada a actuar e em que o conteúdo da decisão depende de escolhas que são da sua responsabilidade (embora essas escolhas nunca sejam livres).

Segundo Mário Aroso de Almeida[4], são três as hipóteses que podem dar origem a diferentes modalidades do conteúdo da decisão: as situações em que a Administração tem um dever (estrito) de realizar um acto com conteúdo determinado, ou seja, são as sentenças de condenação estrita; depois, são as situações de “redução da discricionariedade a zero”, caso em que, apesar de a lei conceder à Administração uma certa discricionariedade para decidir, no caso concreto, só uma é a solução legal admissível (em função do que foi apurado); por fim, temos as situações em que o conteúdo é totalmente discricionário, em que a Administração é condenada a praticar um acto administrativo, mas em que não lhe são dadas quaisquer especificações quanto ao conteúdo do acto (que deverá ser praticado).

Por sua vez, o Professor Vasco Pereira da Silva considera que existem duas modalidades de sentenças (relativamente ao conteúdo)[5], Pois reconduz as situações de  “redução da discricionariedade a zero”, em termos concretos, às situações de vinculação legal (sendo uma situação de discricionariedade apenas do ponto de vista abstracto). Assim, segundo a divisão vinculação/discricionariedade, distingue: as sentenças de condenação que determinam o conteúdo do acto administrativo (porquanto corresponde ao exercício de poderes vinculados); e, as sentenças que conduzem à prática de um acto administrativo cujo conteúdo é em parte indeterminado, porque estão em causa escolhas que cabem à Administração fazer. Ainda assim, nesta última modalidade, o tribunal deve indicar qual a maneira mais correcta de se exercer o poder discricionário (através do estabelecimento de limites e do alcance das vinculações legais, tal como deve fornecer orientações quanto aos critérios de decisão).

Por conseguinte, não há violação do princípio da separação de poderes, na medida em que o tribunal determina os elementos vinculados e orienta os elementos discricionários do acto da Administração Pública, mas sem decidir das escolhas que a esta competem exclusivamente. O tribunal deve apenas estabelecer o alcance e limites, conformando o comportamento da Administração e, por outro lado, fornecer orientações quanto ao exercício do poder discricionário naquele caso.

Deste modo, o C.P.T.A. apenas formula um limite porque no caso do conteúdo do acto não ser completamente vinculado (quando haja mais do que uma solução ou quando não haja “redução da discricionariedade a zero”), o juiz limita-se a fazer uma condenação genérica, fazendo apenas algumas indicações, mas sem pôr em causa a autonomia da decisão do órgão da Administração.

 

 

 



[1] Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa” (Lições)
[2] Mais uma vez, Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa” (Lições)
[3] Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”
[4] Mário Aroso de Almeida, “O Novo regime do Processo nos Tribunais Administrativos”
[5] Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”
                                                                                                                                                             
                                                                                                                                                                    Raquel Fanha, nº 19825

Condenação à prática de acto legalmente devido com discricionariedade (conteúdo da sentença)


 

 
Antes de nos referirmos ao contudo da sentença da condenação à prática de acto legalmente devido, importa, antes de mais, fazer referência à acção em si. Com a acção de condenação à prática de um acto legalmente devido pretende-se a condenação da entidade competente para a prática do acto que foi ilegalmente omitido, dentro de um certo prazo[1]. Por sua vez, o acto que o particular considera devido é aquele que, segundo o autor, deveria ter sido emitido e não o foi, quer porque houve uma omissão, quer porque foi praticado o acto, mas não satisfez a pretensão do particular[2] (contudo, tenha-se em atenção que para o Professor Vasco Pereira da Silva, o objecto do processo não é um acto administrativo, mas antes o direito do particular a uma determinada actuação da Administração[3]).

Especificamente, quanto ao conteúdo da sentença, coloca-se a questão de saber se esta pode conter uma solução discricionária. O artigo 71.º/2 do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (doravante C.P.T.A.) “responde” concretamente a essa dúvida, ao dispor que “o tribunal não pode determinar o conteúdo do acto a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido. Deste modo, as sentenças de condenação na prática de acto legalmente devido podem apresentar diversos conteúdos, pois, são várias as situações em que a Administração é obrigada a actuar e em que o conteúdo da decisão depende de escolhas que são da sua responsabilidade (embora essas escolhas nunca sejam livres).

Segundo Mário Aroso de Almeida[4], são três as hipóteses que podem dar origem a diferentes modalidades do conteúdo da decisão: as situações em que a Administração tem um dever (estrito) de realizar um acto com conteúdo determinado, ou seja, são as sentenças de condenação estrita; depois, são as situações de “redução da discricionariedade a zero”, caso em que, apesar de a lei conceder à Administração uma certa discricionariedade para decidir, no caso concreto, só uma é a solução legal admissível (em função do que foi apurado); por fim, temos as situações em que o conteúdo é totalmente discricionário, em que a Administração é condenada a praticar um acto administrativo, mas em que não lhe são dadas quaisquer especificações quanto ao conteúdo do acto (que deverá ser praticado).

Por sua vez, o Professor Vasco Pereira da Silva considera que existem duas modalidades de sentenças (relativamente ao conteúdo)[5], Pois reconduz as situações de  “redução da discricionariedade a zero”, em termos concretos, às situações de vinculação legal (sendo uma situação de discricionariedade apenas do ponto de vista abstracto). Assim, segundo a divisão vinculação/discricionariedade, distingue: as sentenças de condenação que determinam o conteúdo do acto administrativo (porquanto corresponde ao exercício de poderes vinculados); e, as sentenças que conduzem à prática de um acto administrativo cujo conteúdo é em parte indeterminado, porque estão em causa escolhas que cabem à Administração fazer. Ainda assim, nesta última modalidade, o tribunal deve indicar qual a maneira mais correcta de se exercer o poder discricionário (através do estabelecimento de limites e do alcance das vinculações legais, tal como deve fornecer orientações quanto aos critérios de decisão).

Por conseguinte, não há violação do princípio da separação de poderes, na medida em que o tribunal determina os elementos vinculados e orienta os elementos discricionários do acto da Administração Pública, mas sem decidir das escolhas que a esta competem exclusivamente. O tribunal deve apenas estabelecer o alcance e limites, conformando o comportamento da Administração e, por outro lado, fornecer orientações quanto ao exercício do poder discricionário naquele caso.

Deste modo, o C.P.T.A. apenas formula um limite porque no caso do conteúdo do acto não ser completamente vinculado (quando haja mais do que uma solução ou quando não haja “redução da discricionariedade a zero”), o juiz limita-se a fazer uma condenação genérica, fazendo apenas algumas indicações, mas sem pôr em causa a autonomia da decisão do órgão da Administração.

 

 

 



[1] Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa” (Lições)
[2] Mais uma vez, Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa” (Lições)
[3] Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”
[4] Mário Aroso de Almeida, “O Novo regime do Processo nos Tribunais Administrativos”
[5] Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”

A Aceitação do Acto Administrativo: Fundamentos


A figura da aceitação do acto administrativo é característica do ordenamento jurídico português, que a prevê no artigo 56º do CPTA e nos artigos 53º/4 e 160º/2 do CPA[1]. No primeiro caso, a lei estatui que o aceitante perde a faculdade de impugnar contenciosamente o acto; no segundo caso a consequência passa pela impossibilidade de reclamação ou recurso hierárquico. Para além do nosso ordenamento, só o direito italiano conhece a figura em apreço, aplicando-a apenas às impugnações contenciosas e não às administrativas. Em Itália é reconhecida apenas de forma jurisprudencial e doutrinária, sendo que lhe é aplicado, extensivamente, o regime processual civil sobre a aceitação de sentenças[2]. No nosso trabalho iremos, essencialmente, analisar o artigo 56º do CPTA, embora as conclusões sejam de certa forma transversais à aceitação de actos administrativos regulada pelo CPA[3].
            O objecto deste estudo são os fundamentos da aceitação do acto administrativo, quais os valores em causa na consagração desta figura jurídica. Assim sendo, não nos iremos debruçar sobre a noção, distinção de figuras afins e a sua natureza jurídica. Iremos partir da noção que Vieira de Andrade oferece, definindo a aceitação como “um acto jurídico no qual a lei estabelece como efeito a preclusão do direito de impugnação do particular aceitante[4].
           
            Em nossa opinião, esta figura concilia vários valores e princípios essenciais do ordenamento jurídico português: por um lado, como contra-fundamentos da consagração da figura[5], a legalidade administrativa e o direito de acesso aos tribunais (neste caso na vertente do direito de impugnação de actos administrativos); por outro lado, a segurança jurídica e a boa fé. Iremos analisar cada um dos valores individualmente.

            A Administração Pública tem de prosseguir o interesse público em obdiência à lei (art. 266º/2 CRP e art. 3º do CPA). “Os orgãos e agentes da Administração Pública só podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos[6]”, sendo necessário que toda a actuação da Administração se fundamente na lei, sendo irrelevante que seja agressiva ou prestacional. Assim, o princípio da legalidade desdobra-se em duas dimensões: preferência de lei e reserva de lei. A primeira, a que nos interessa, significa que os actos da Administração não podem contrariar a lei, tendo esta prevalência sobre aqueles. Caso os actos não respeitem a lei são ilegais, recaindo sobre a Administração um verdadeiro dever de eliminar a ilegalidade cometida[7].
A aceitação do acto administrativo põe em causa a legalidade administrativa, permitindo que actos ilegais[8] se mantenham na ordem jurídica. Isto acontece porque o aceitante, na maior parte das vezes o principal interessado naquele acto jurídico, perde a faculdade de impugnar. No entanto, o príncipio da legalidade não é afastado completamente, pois a aceitação do acto administrativo é meramente relativa, i.e., só aquele particular não poderá impugnar o acto, tendo outros particulares ou mesmo o Ministério Público a possibilidade de ir a tribunal pedir a anulabilidade do acto.

            O direito[9] de acesso aos tribunais consagrado no art. 20º/1 da CRP e no art. 268º/4 relativamente a actos jurídico-públicos é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias (art. 17º CRP)[10], e uma concretização do princípio estruturante do Estado de Direito. Podemos considerá-lo como um direito fundamental instrumental em relação aos restantes, porque é ele que permite a defesa de todos os outros direitos fundamentais em tribunal. A garantia de acesso aos tribunais é uma garantia plena, não podendo esta ser restringida arbitrariamente, havendo violação de um direito fundamental caso isso aconteça. Como se pode calcular, a aceitação do acto administrativo coloca-a em causa, isto porque a lei estipula, como consequência da aceitação, a perda da faculdade de impugnação do acto administrativo.
            Este direito não implica que o particular não possa, em qualquer caso, ir a tribunal defender os seus direitos. Como Jorge Miranda/ Rui Medeiros[11] referem, a consagração de pressupostos processuais não viola o direito de acesso aos tribunais, desde que proporcionais e não arbitrários[12]. Sendo a aceitação do acto administrativo um pressuposto processual negativo, não podemos concluir imediatamente que a consagração legislativa do mesmo é inconstitucional. Essa conclusão só poderá ser retirada após a análise da proporcionalidade da restrição ao direito fundamental de acesso aos tribunais relativamente aos bens que estão a ser tutelados com a figura jurídica.
            Sendo consensual, actualmente, que a aceitação do acto administrativo é um pressuposto processual negativo, já é discutido se é um pressuposto autónomo ou se pertence a outro preexistente. Rui Machete considerava que a aceitação funcionava como um requisito negativo da legitimidade, sendo a falta de legitimidade consequência da renúncia no direito substantivo ao interesse legítimo[13]. Vasco Pereira da Silva, por outro lado, reconduz a aceitação ao interesse processual, porque o particular perde o interesse na impugnação com a aceitação[14]. Vieira de Andrade afirma que estamos perante um pressuposto processual distinto da legitimidade e interesse processual[15].

            Como fundamentos a favor da consagração legislativa da aceitação do acto administrativos podemos mencionar dois: o princípio da boa fé e o princípio da segurança jurídica.

A boa fé, embora originária do Direito Privado, tem hoje grande relevância no Direito Administrativo. A comprovar isto está a inscrição do princípio da boa fé como princípio orientador da actividade administrativa na revisão constitucional de 1997 (art. 266º/2 CRP) e a previsão expressa do mesmo no CPA em 1996 (art. 6º-A CPA)[16]. A boa fé impõe que os sujeitos tenham nas suas relações comportamentos correctos, leais e éticos, criando certos deveres acessórios que as partes devem respeitar nas relações administrativas.
Existem dois subprincípios que concretizam o princípio da boa fé: o princípio da tutela da confiança e o princípio da materialidade subjacente. O primeiro, que é o mais relevante para o nosso estudo, tem como objecto proteger a confiança criada na outra parte da relação jurídica, podendo esta ser o particular (o que sucedia tradicionalmente), como a própria Administração (é o que decorre da formulação do art. 6º-A/1 do CPA). Visa-se salvaguardar o sujeito contra actuações imprevisíveis da outra parte. A tutela da confiança pressupõe quatro requisitos: a) a existência de uma situação de confiança; b) justificação para essa confiança; c) investimento dessa mesma confiança; d) frustração da confiança por parte daquele que a criou[17].
Ligado à boa fé está o princípio da proibição do venire contra factum proprium, que consiste na proibição de comportamentos contraditórios, não permitindo que um sujeito adopte uma conduta e posteriormente uma conduta contrária, frustrando as expectativas geradas em torno da primeira. Assim sendo, caso o sujeito tivesse aceitado o acto, a impugnação do mesmo corresponderia a um comportamento contraditório com o da aceitação[18].
            Transpondo estas ideias para o nosso problema, na aceitação do acto administrativo tutela-se a confiança da Administração e de possíveis terceiros. Quando alguém se conforma com o conteúdo do acto, na Administração cria-se a confiança que o aceitante não vai impugnar aquele acto. Com base na protecção desta confiança, o legislador impôs como efeito jurídico daquela conformação a perda da faculdade de impugnar o acto. Além da Administração, poderá haver terceiros que pensaram que não ia haver qualquer impugnação do acto. Este terceiro pode ser o directo destinatário do acto administrativo e o principal beneficiário do mesmo, sendo quem aceitou alguém lesado indirectamente. Caso permitíssemos que o aceitante impugnasse o acto, estaríamos a frustrar a confiança da Administração e dos terceiros. Esta confiança nunca é absoluta, pois só o aceitante é que não poderá impugnar o acto. Outros sujeitos, ou mesmo o Ministério Público, poderão lançar mão da acção especial de impugnação de actos administrativos Por este motivo, concordamos com Vieira de Andrade  quando fala numa mera estabilidade relativa[19].
             Sandra Lopes Luís considera que a aceitação do acto administrativo tutela a confiança da Administração Pública e como consequência o interesse público[20]. Não concordamos com este entendimento. O princípio da prossecução do interesse público pressupõe que a Administração não actue contrariamente à lei, pois é esta que define os interesses públicos da Administração[21].

            O princípio da segurança jurídica não tem consagração expressa na Constituição Portuguesa, mas é um elemento constitutivo do Estado de Direito (art. 2º CRP). A segurança jurídica é necessária para o ser humano planear e conformar as suas condutas, não sendo surpreendido por novas circunstâncias. Este princípio está intimamente ligado à tutela da confiança referido no âmbito do princípio da boa fé, contudo podemos distingui-los, já que, na boa fé, designadamente no seu corolário da protecção da confiança, está em causa a vertente subjectiva da segurança jurídica. Analisam-se os efeitos que um determinado comportamento de um sujeito teve noutro particular; a confiança criada num sujeito em concreto[22].
            Relativamente aos actos da Administração, entende-se que os actos administrativos gozam de uma tendencial imutabilidade (força de caso decidido dos actos administrativos). Há um certo paralelismo entre a força de caso julgado das sentenças e a tendencial irrevogabilidade do acto administrativo. Gomes Canotilho considera que isto se traduz em: 1) autovinculação da Administração na qualidade de autora do acto e como consequência da obrigatoriedade do acto; 2) tendencial irrevogabilidade do acto a fim de salvaguardar os interesses dos particulares destinatários do acto[23].
            O autor parece considerar que a segurança jurídica, no que respeita aos actos da administração, apenas tem o objectivo de proteger os particulares. Em relação ao nosso tema, quando a Administração pratica um acto administrativo, vários particulares podem ser afectados pelo mesmo. O aceitante, caso pudesse impugnar o acto administrativo, estaria a pôr em causa a previsão de não impugnabilidade não só da Administração Pública, mas também dos restantes particulares.
            No entanto, parece-nos que a segurança jurídica não visa tão só proteger os particulares contra os poderes públicos. Também os entes públicos precisam de previsibilidade para conformar as suas condutas e não serem surpreendidos. Neste sentido, mesmo que só a Administração Pública seja “beneficiada” com a aceitação do acto administrativo, a segurança jurídica continuará a ser um valor a ter em conta para a sua constitucionalidade e consagração legislativa.

              Os direitos, liberdades e garantias não vivem sozinhos no ordenamento jurídico. Consequentemente, eles não são absolutos e têm de se compatibilizar com outros princípios expressos na Constituição. Além destes casos, ainda existem valores e princípios que, embora não expressamente consagrados na Constituição, derivam da mesma (a segurança jurídica é um exemplo). Neste caso também é preciso compatibilizar os direitos, liberdades e garantias com estes valores.
 Um direito fundamental pode ser restringido das seguintes formas: 1) directamente pela Constituição; 2) através de lei, mas autorizada pela Constituição; 3) através de lei, sem autorização expressa da Constituição. Relativamente ao direito de acesso aos tribunais, a Constituição não restringe nem autoriza expressamente a restrição do mesmo. Assim sendo, a única possibilidade de restringir o direito seria através de uma restrição não expressamente autorizada pela Constituição. As restrições implícitas são permitidas, pois é necessário salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos. Contudo, é preciso afirmar que estas restrições ainda funcionam dentro da Constituição, sendo necessário encontrar nela interesses ou princípios que nos levem a essa restrição. Estas restrições estão sujeitas ao procedimento das leis restritivas (art. 18º/2 e 3 CRP).
            Não sendo este o local apropriado para analisar todo o procedimento das leis restritivas, apenas iremos referir os dois requisitos essenciais para o nosso problema: o princípio da proporcionalidade e a salvaguarda do núcleo essencial do direito fundamental[24]. O princípio da proporcionalidade (art. 18º/2) implica que a restrição legal seja adequada, necessária e proporcional (em sentido restrito). A lei restritiva tem que responder ao fim visado, tem que ser a única forma possível de atingir aquele fim e não pode atingir em demasia o direito fundamental restringido em comparação com a vantagem que outro bem constitucionalmente protegido vai usufruir. O princípio da salvaguarda do núcleo essencial (art. 18º/3) visa afirmar que existe uma parcela do direito que nunca poderá ser restringida.

            Em nossa opinião, a restrição do direito de acesso aos tribunais não é desproporcional em relação aos interesses constitucionalmente protegidos com a mesma. O particular que aceita o acto administrativo conforma-se com o conteúdo do mesmo, levando a Administração Pública e outros sujeitos a pensar que ele não impugnará o acto. Caso permitíssemos que continuasse a poder ir a tribunal, estaríamos a violar a confiança criada nas outras entidades.
            Em relação à legalidade administrativa, também pensamos que ela não é afectada de forma abusiva. Aquele acto administrativo continuará a ser impugnável por outros sujeitos que não o tenham aceitado e até pelo Ministério Público. Apenas existe uma estabilidade relativa, como já referimos supra. Além disso, a aceitação do acto administrativo nunca pode ter como objecto um acto nulo. Dizemos isto porque neste caso não há interesses a tutelar, “não estamos perante uma verdadeira decisão de autoridade da Administração que mereça a protecção acrescida da ordem jurídica, e esse é o pressuposto e a razão de ser do instituto[25].
            Como requisito da sua constitucionalidade, é necessário que exista uma vontade livre e esclarecida na aceitação do acto administrativo. O particular não pode aceitar se estiver com receio das consequências do não cumprimento, como tem de conhecer da eventual ilegalidade do acto para que a aceitação seja eficaz[26].
            Mais dúvidas sobre constitucionalidade suscita a aceitação tácita, pois ela deduz-se de factos incompatíveis com a vontade de impugnar (art. 56º/2 CPA). Pode parecer que estamos a restringir em demasia o direito fundamental de acesso aos tribunais com base em suposições, sendo desproporcional essa restrição relativamente ao que se pretende tutelar.
Contudo, isto não pode ser visto dessa forma. Os factos incompatíveis com a vontade de impugnar são uma questão de direito e por isso uma incompatibilidade normativa. O juiz, quando estiver a julgar um caso concreto, vai ponderar os interesses em jogo, como a boa fé ou a protecção da confiança. Se concluir que a impugnação resultará na violação desses valores decidirá que existiu aceitação tácita do acto administrativo.
Para ajudar a tese da constitucionalidade do preceito, há que ter em conta que, em caso de dúvida, o juiz julga a favor do direito de acesso aos tribunais e conclui que não existiu aceitação[27]. Na aceitação tácita, caso não se chegue a nenhuma conclusão, prevalece o direito fundamental restringido; o direito de acesso aos tribunais.



[1] Também esteve prevista no art. 47º do Regulamento do STA, que estava incluído na subsecção “Da legitimidade para recorrer” e ainda no Código Administrativo –art. 827º -, numa secção relativa à legitimidade e aos prazos para recorrer.
[2] Sobre as teses sustentadas em Itália, Vieira de Andrade, “A Aceitação do Acto Administrativo”, 2003, p. 912-913.
[3] Como Vieira de Andrade refere, cit,  p. 908, a aceitação que impede a impugnação administrativa é extremamente relevante para o contencioso administrativo caso estejamos perante um recurso hierárquico necessário. A perda da faculdade de impugnação administrativa terá como consequência a impossibilidade de impugnação contenciosa, pois esta exige que tenha existido previamente um recurso hierárquico.
[4] Sobre as questões aqui não desenvolvidas, Vieira de Andrade, cit, p. 907 e ss, Rui Machete, Sanação (Do Acto Administrativo Inválido), 1996, p. 336 e ss, Sandra Lopes Luís, A Aceitação do Acto Administrativo, 2008.
[5] Seguindo a expressão de Sandra Lopes Luís, cit, p. 132.
[6] Diogo Freitas do Amaral, Curso, II, p. 42.
[7] Neste sentido, Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, I, p. 163, Diogo Freitas do Amaral, Curso, II, p. 463-465.
[8] Como refere Sandra Lopes Luís, a aceitação pode ter como objecto um acto administrativo válido. Neste caso, o argumento do princípio da legalidade não procede. A aceitação pode recair sobre um acto válido, pois pode haver reclamação ou recurso hierárquico sobre o mérito (art. 159º CPA). Sendo a acção de impugnação de actos administrativos de mera legalidade, a aceitação de actos válidos não nos interessa, ob. cit., p. 148-149.
[9] Discute-se se o direito de acesso aos tribunais é um direito ou uma garantia. Não vamos entrar na discussão e usaremos as expressões indiferenciadamente.
[10] Ver, por todos, Jorge Miranda /Rui Medeiros, Constituição da Républica Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, p. 144.
[11] Jorge Miranda / Rui Medeiros, cit, p. 187-188.
[12] Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, p. 498-499 refere que não podem haver pressupostos processuais desnecessários, não adequados e desproporcionados.
[13] Rui Machete, cit, p. 341.
[14] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2º ed, 2009, p. 374.
[15] Vieira de Andrade, cit, p. 926 e ss.
[16] Sobre o surgimento da boa fé no Direito Administrativo, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, p. 483 e ss.
[17] Sobre os pressupostos da protecção da confiança, ver Menezes Cordeiro, cit, p. 1243 e ss.
[18] Neste sentido, Sandra Lopes Luís, cit, p. 138, Mário Esteves de Oliveira/ Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol I, p. 372.
[19] Vieira de Andrade, cit, p. 922.
[20] Sandra Lopes Luís, cit, p. 136.
[21] Afirmando claramente isso, Diogo Freitas do Amaral, cit, II, p. 36 e 41.
[22] Gomes Canotilho, cit, p. 257, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, 4º ed, 2008, p. 273-274, Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da Républica Portuguesa, 2004, p. 260 e ss.
[23] Gomes Canotilho, cit, p. 265.
[24] Sobre a matéria das leis restritivas, ver, Gomes Canotilho, cit, p.448 e ss, Jorge Miranda, cit, p. 366 e ss.
[25] Vieira de Andrade, cit, p. 923-924.
[26] Vieira de Andrade, cit, p. 924-925
[27] Jorge Miranda, cit, p. 379, Vieira de Andrade, cit, p. 930-932.


Daniel Bogalheiro  ( 19565)