Os Três Sacramentos do Contencioso Administrativo – Parte I
O Contencioso Admnistrativo padece de vício que o acompanha desde tenra idade. Pecou e tenta redimir-se por sacramentos ao longo da sua expansão. Pecou e baptizou-se, crismou-se e resta-nos um último sacramento.
Comecemos com o pecado original. A maçã do pecado, a serpente é tentadora, convida a administrar e julgar, pelo que se administra e julga.
Situamo-nos. Historicamente Revolução Francesa, agitadora social e política de uma Europa fragmentada. Prega-se a separação de poderes que engana na denominação já que não os dissocia mas confunde. Três poderes distintos entre si mas fatalmente reunidos. A noção de Estado pauta o dilema, diz-nos de onde parte este Contencioso que é pecador. Um Estado Leviatã, colosso e omnipotente cria-o. VASCO PEREIRA DA SILVA cita HENKE: “jurisdição administrativa é vista como instância de controlo do sistema de formação da vontade do Estado e não como verdadeiro tribunal”. A isto se subsume o idealismo administrativo do pensamento termidoriano. Este foi um Contencioso especial, criado. E ainda MONTESQUIEU: “ juízes são as bocas que pronunciam as palavras da lei" ( Les juges « ne sont que la bouche qui prononce les paroles de la loi, des êtres inanimés qui n'en peuvent modérer ni la force, ni la vigueur») , sem qualquer poder.
Estamos a anos-luz do iurisprudens romano, e ainda assim apenas com um milénio e três quartos de avanço que tornam o juiz no fantoche da lei e da política.
Neste contencioso administrativo agrupam-se heranças do Antigo Regime com criações e princípios base do ideal revolucionário num grande bolo jus-histórico-político. Mas, como sempre acontece que se leva muita bagagem, fica algo pelo caminho. Desta vez foi apenas a justiça. Onde inserir o problema? Quiçá no modelo Administrativista referidos por VIEIRA DE ANDRADE, haveria ainda, se bem que disfarçada, a desconfiança perante o poder judicial. Esquecemos os particulares que foram também então esquecidos, através de uma fase de desconsideração do indivíduo como sujeito de relações jurídicas administrativas camufladas por caracterizações patéticas [salvo o devido respeito] de direitos subjectivos objectivos, ou o direito subjectivo público, conforme o autor. De volta ao Contencioso, num Direito Administrativo emergente em que, preso por cordão umbilical, temos o acto administrativo. Assimilado à sentença judicial, dizia OTTO MAYER que representavam a eficácia do poder público.
É o princípio da redenção.
Baptiza-se assim o Contencioso Administrativo, ou jurisdicionaliza-se. Inicia-se este lento sacramento com uma passagem do Estado Liberal ao Social. O Contencioso não é mais visto como uma realidade, mercê do circunstancialismo histórico e social, mas sim como ocupante de um verdadeiro lugar na ordem jurídica.
Nessa transição, os tribunais administrativos deixam de representar jurisdição privativa da administração pública, convertendo-se em jurisdição especializada no tratamento de questões do direito administrativo. Também o Contencioso se vai paulatinamente autonomizando do poder administrativo, não se operando, contudo, tal transformação em momento único e imediato, antes acompanha a passagem de Estado Liberal a Social e incorpora as mudanças que comporta.
A “redenção” produz-se de forma diferente pela Europa, de forma mais fácil que no país da sua génese (França). Começa a sentir-se aproximação do sistema continental e britânico. Em Portugal, chega atrasado, acompanhado do sacramento seguinte: o Crisma, ou a Confirmação. Isto porque a Constituição de 1933 tinha adoptado o sistema de Justiça delegada (citamos VIEIRA DE ANDRADE: modelo “em que a resolução de litígios referentes à administração, por não ser substancialmente estranha à função jurisdicional, cabe às autoridades judiciárias”). É visto como modelo intermédio, tanto temporal como culturalmente, em Portugal.
E como o Contencioso não é indiferente à erosão dos tempos, acompanha o aprofundamento da Noção de Estado que o impulsiona. Mais, e se chegamos à passagem teórica para o Estado Social, de que forma lhe modelam o crescimento, as características, os domínios sociais económicos? Terá então maturidade suficiente para se Crismar, exarar os vícios que comporta desde antes da sua criação?
Tudo isto e mais, na Parte II deste post.
MARGARIDA D’OLIVEIRA MARTINS
Bibliografia:
- José Carlos Vieira de Andrade – A Justiça Administrativa (Lições), 9ª Edição
- Montesquieu – L’Esprit des Lois
- Vasco Pereira da Silva – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição