quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Relações jurídicas multilaterais - A Origem (Prequela)




Relações jurídicas multilaterais - a origem (Prequela)



A origem da concepção de relações jurídicas multilaterais surgiu através da necessidade de tutelar os efeitos da actuação da Administração que historicamente começou a tornar a sua actuação mais complexa e mais embrenhada no quotidiano da sociedade.

A Administração, fruto do seu poder de criação de actos administrativos, influenciava de uma forma directa aqueles que eram alvo destes actos, dando origem a uma concepção bilateral da relação jurídica administrativa, que encarava a Administração como agressora e, no extremo oposto, o particular, como o agredido.

A evolução, da Sociedade em geral, que tomou consciência da globalidade de certos problemas e, consequentemente e em particular, da Administração, que caminhou no sentido de um entrosamento mais complexo de direitos e deveres, alargando o seu espectro de actuação aos direitos subjectivos públicos, baseados em direitos fundamentais, tornou evidente que uma mera relação causa-efeito com dois pólos identificáveis não era suficiente para atender à crescente polarização de interesses.

Mais especificamente, foi através de acções de anulação de actos administrativos atributivos de direitos a particulares que se começou a ter a percepção de que a tal bipolarização de interesses não tutelava de forma suficiente os (vários) interesses dos  particulares.

A doutrina e a jurisprudência alemãs arrancaram com a discussão sobre a efectiva tutela dos vários interesses que eram afectados pela actuação da Administração, através da dogmática do acto administrativo de duplo efeito1 e do acto administrativo com efeitos em relação a terceiros2 

Reconhecendo-se assim que o acto administrativo pode afectar outros que não só o destinatário do acto, surge a necessidade de tutela das posições subjectivas dos particulares, para garantir uma protecção jurisdicional mais forte.

A Reforma Administrativa de 2004 veio importar para o ordem jurídica nacional, a ideia de origem germânica, da defesa dos direitos subjectivos do particular, abandonando-se em larga medida o posicionamento objectivista do acto administrativo. 

Para tutelar os direitos subjectivos dos particulares face à Administração, o juiz passa a ponderar, mais do que a ilegalidade intrínseca dos actos administrativos, os vários interesses em jogo, pronunciando-se verdadeiramente sobre o mérito da causa e superando a teoria do acto de duplo efeito, que concebe que o acto produz multiplicidade de efeitos, sem, no entanto, atender a direitos prévios à sua produção.

O entrosamento acima referido é evidenciado pela forma como a Administração — que prossegue o interesse público — pode afectar os interesses privados, através, por exemplo, das relações de vizinhança, onde um acto da Administração que tenha o intuito de conceder benefícios a certo arrendatário pode prejudicar os restantes arrendatários ou beneficiá-los de uma forma distinta.

Este tipo de situações é recorrente nas autorizações de construção3, em matéria de urbanismo ou ainda em matéria ambiental4, tal como exemplificado na publicação anteriormente feita, para onde também remetemos para explicar a consagração desta dogmática no Contencioso Administrativo Português.


João Francisco Sá
Aluno n.º 19669

Freitas, Dínamene, As Relações Administrativas Multilaterais, orientação de Prof. Doutor Sérvulo Correia, Lisboa, 2003
Jordão, Teresa, A Igualdade das Partes no Contencioso Administrativo (das relações jurídicas bilaterais às relações jurídicas multilaterais), orientação de Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva, Lisboa, 2005
Silva, Vasco Pereira, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 1998

Notas
1 Em alemão, Doppelwirkung

2 Em alemão, Drittwirkung

3 Sobre este exemplo, citando doutrina alemã, Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Administrativo Perdido, página 274

4 Ver Gomes Canotilho, Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo

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