sábado, 1 de dezembro de 2012

O reconhecimento de situações jurídicas subjetivas: fissura entre interesses públicos e privados?



         A ação administrativa comum classifica-se como tal dada a sua subsidiariedade em relação às ações especiais, isto é, será regulado pela forma comum tudo quanto não se inscrever no âmbito do objeto de regulação especial. No dizer de Vieira de Andrade, o critério distintivo entre ambas parece ser o da situação das partes, ou seja, na ação comum haveria uma tendencial paridade entre as partes, enquanto na especial estaríamos já ante uma posição de autoridade e, portanto, de discrepância no posicionamento das partes no litígio[1]. O professor Vasco Pereira da Silva releva, ainda, um outro critério, no qual a ação administrativa especial assistiria ao controlo de atos e regulamentos administrativos, enquanto para a ação comum ficariam as restantes formas de atuação administrativa (contratos, atuações informais ou técnicas ou operações materiais)[2].
        No que concerne especificamente ao objeto em análise do presente comentário situar-nos-emos naquela que é uma de muitas “modalidades” da ação administrativa comum: a ação de reconhecimento de situações jurídicas subjetivas, elencada numa dupla vertente – alíneas a) e b) do número 2 do artigo 37.º, Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante: CPTA). Nas alíneas referidas estão em causa, por um lado, pedidos de “reconhecimento de situações jurídicas subjetivas diretamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo” e, por outro, pedidos de “reconhecimento de qualidades ou do preenchimento de condições”. Este duplo alcance advém da anterior ação de reconhecimento de direitos e interesses legítimos[3] que, dada a sua ambiguidade, acabou por desaparecer para dar lugar à consagração legal ora em análise[4]. A anterior ação só parcialmente encontra correspondente, uma vez que admitia que, para além de ações meramente declarativas, se emitissem sentenças condenatórias e constitutivas para reconhecimento destas posições jurídicas dos particulares.
             A ação antepassada das alíneas a) e b) do artigo 37.º/2, CPTA, teve uma importância fundamental no processo administrativo, porquanto veio atender à particular necessidade de reger as relações dos particulares com a Administração (que era até então escassa, dada a história do Contencioso Administrativo e a constante promiscuidade entre o administrar e o julgar e os privilégios que eram concedidos à Administração em detrimento dos particulares). Nas palavras de Sousa Fábrica[5] «é uma verdade de todos os tempos que o conceito de ação [administrativa] se situa no núcleo do relacionamento entre interesses individuais e interesses públicos, entre direito subjetivo e objetivo, enfim, entre o indivíduo e o Estado». E esta continua a ser uma verdade incontornável, porquanto cada vez mais se estabelecem relações entre a Administração e os particulares e, tanto os atos da Administração restringem a liberdade dos particulares, como a própria atuação dos particulares pode causar danos à Administração. Todavia, nesta relação, houve desde sempre uma parte mais fraca: o particular e tanto mais sendo a história do Contencioso Administrativo como foi. Daí a importância desta ação, que veio talvez pôr um ponto final nos privilégios administrativos. Uma norma que seja atributiva de poderes à Administração toma também em consideração, seja de modo direto ou indireto, os interesses privados, estabelecendo formas do seu relacionamento com os interesses públicos, modelando-os ou sacrificando-os até e, daí, surgir a necessidade de o particular fazer notar a sua presença, dizendo “eu tenho uma situação jurídica a tutelar!”.
         Esta ação surge como consagração da exigência constitucional de tutela jurisdicional efetiva dos particulares[6] (vide artigos 20.º/5 e 268.º/4, CRP), enquanto imposição derivada da justiça material, no sentido de ter que se recorrer a um processo de ponderação em concreto dos vários interesses envolvidos, sejam eles públicos ou privados ou ambos.  
             Retomando agora o tempo presente, as sentenças ora em análise visam, somente, o reconhecimento da existência ou inexistência de direitos ou factos e, logo, preveem a emissão de sentenças meramente declarativas ou de simples apreciação. As ações de simples apreciação visam apenas que o tribunal declare a existência ou a inexistência de um direito ou de um facto. Não se pede que o tribunal condene o réu na realização de uma qualquer prestação. Não se pede que o réu seja condenado no cumprimento de uma prestação exigível nem que, cumulativamente, a decisão judicial crie um efeito jurídico novo[7]. Assim sendo, compreende-se a exigência feita pelo artigo 39.º, CPTA de um interesse processual específico, sob pena de se “abusar” do processo administrativo, dado que, nas palavras de Vieira de Andrade «[nas ações declarativas] predomina , em vez de uma necessidade de reação, uma necessidade de prevenção». Deste modo, para “usufruir” deste tipo de ações ter-se-á que invocar, para além da normal legitimidade processual, uma utilidade ou vantagem imediata na declaração judicial pretendida. Assim, o artigo prevê algumas situações em que existirá esse interesse processual, a saber: «[1] por existir uma situação de incerteza[8], [2] de ilegítima afirmação por parte da Administração, [3] da existência de determinada situação jurídica, ou [4] o fundado receito de que a Administração possa vir a adotar uma conduta lesiva, fundada numa avaliação incorreta da situação jurídica existente».
         O professor Aroso de Almeida[9] enquadra, ainda, no seio desta ação as ações dirigidas à declaração de nulidade dos contratos cuja apreciação se encontra submetida à jurisdição administrativa, assim como as ações de interpretação de contratos, em que haja que obter do tribunal o esclarecimento do sentido controvertido de determinadas cláusulas contratuais (que se subsumirá a uma situação de incerteza, prevista no artigo 39.º).
         O professor Vasco Pereira da Silva[10] assume uma posição algo crítica quanto a esta ação de reconhecimento, não pelo seu conteúdo, mas sim pela sua construção jurídica pelo legislador administrativo, senão veja-se: no que concerne à alínea a), Pereira da Silva discute se o que está em causa são “atos jurídicos” (como o artigo referencia) ou se o legislador queria antes referir-se a “atuações juridicamente relevantes” e conclui por esta última alternativa, afirmando que, quanto à primeira, existe uma reserva para a ação administrativa especial. Quanto à alínea b) do mesmo artigo, o professor refere-se a uma sobreposição em face da alínea anterior, porquanto, mormente acaba por ter a mesma previsão que a a), até porque, atendendo à forma como foi construída essa alínea, dir-se-á que dado o seu caráter algo genérico, tudo quanto de pretensões subjetivas se trate, com vista à emissão de sentenças meramente declarativas, caberá ali (mas isto é só um comentário lateral).
              Críticas formais à parte (com as quais aliás concordamos inteiramente), o que é certo é que, como foi referido, esta ação tem um passado bastante importante e um presente muito marcado por essa história. Resta saber como será o futuro numa sociedade em que há cada vez mais envolvência entre a Administração e os particulares.
              Para rematar o comentário, deixamos um exemplo dado pelo professor Vasco Pereira da Silva (no mínimo curioso) e que marca bem o contexto desta ação: o senhor X inscreveu-se num Curso de Pós-graduação em Direito e comunicou-o ao superior hierárquico. A partir do momento em que essa comunicação foi feita, sempre que chegava a hora de X sair para ir para as aulas, o superior trazia-lhe uns trabalhos “de última hora, urgentes” a realizar no momento, não permitindo assim a X que pudesse ir assistir às aulas do Curso. 


Beatriz Santos (n.º19519)



[1] ANDRADE, Vieira de; “A Justiça Administrativa (Lições); Almedina, 11ªedição, 2011 (pp.146-148 e 158-162)
[2] SILVA, Vasco Pereira da; “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise: ensaio sobre as ações no novo processo administrativo”; 2ªedição, Almedina, 2009 (página 438)
[3] Que constava dos artigos 69.º e ss., LEPTA
[4] Luís Sousa da Fábrica referia-se, em 1987, exatamente a esta possibilidade dizendo que «a ação de reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos, pela sua ambiguidade e concisão da regulamentação, será o que a jurisprudência dela fizer» (página 50, «A ação para o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos», Luís Manuel da Costa Sousa da Fábrica, Lisboa, 1987). Também João Caupers e João Raposo criticavam aquela opção legal, afirmando que a mesma enfermava de dois vícios: por um lado, o caráter residual; por outro, o caráter complementar (em “Contencioso Administrativo: anotado e comentado”, João Caupers e João Raposo, Aequitas, Editorial Notícias, Coleção Commentarium, 1994). O primeiro poder-se-á dizer ter sido combatido, o segundo nem tanto.
[5] «A ação para o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos», Luís Manuel da Costa Sousa da Fábrica, Lisboa, 1987
[6] Vide citação de Gomes Canotilho: «a qualquer ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos e a qualquer ilegalidade da Administração deve corresponder uma forma de garantia jurisdicional adequada» em obra de João Caupers e João Raposo, “Contencioso Administrativo: anotado e comentado”, Aequitas, Editorial Notícias, Coleção Commentarium, 1994
[7] MARQUES, J. P. Remédio; “Ação declarativa à luz do Código revisto”, Coimbra Editora, 3ªedição, 2011
[8] O prof. Mário Aroso de Almeida, densificando este conceito de incerteza, afirma que serão situações nas quais «a lei imponha diretamente, sem necessidade da mediação de ato administrativo, limites, restrições ou condicionamentos aos direitos individuais cujos contornos não sejam claros e, por isso, careçam de concretização» (vide nota de rodapé número 51, página 113, ALMEIDA, Mário Aroso de; “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2012).
[9] ALMEIDA, Mário Aroso de; “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2012 (página 114)
[10] Ob. cit.

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