A ação administrativa comum
classifica-se como tal dada a sua subsidiariedade em relação às ações
especiais, isto é, será regulado pela forma comum tudo quanto não se inscrever
no âmbito do objeto de regulação especial. No dizer de Vieira de Andrade, o
critério distintivo entre ambas parece ser o da situação das partes, ou seja,
na ação comum haveria uma tendencial paridade entre as partes, enquanto na
especial estaríamos já ante uma posição de autoridade e, portanto, de discrepância
no posicionamento das partes no litígio[1].
O professor Vasco Pereira da Silva releva, ainda, um outro critério, no qual a
ação administrativa especial assistiria ao controlo de atos e regulamentos
administrativos, enquanto para a ação comum ficariam as restantes formas de
atuação administrativa (contratos, atuações informais ou técnicas ou operações
materiais)[2].
No que concerne especificamente
ao objeto em análise do presente comentário situar-nos-emos naquela que é uma
de muitas “modalidades” da ação administrativa comum: a ação de reconhecimento
de situações jurídicas subjetivas, elencada numa dupla vertente – alíneas a) e
b) do número 2 do artigo 37.º, Código de Processo nos Tribunais Administrativos
(doravante: CPTA). Nas alíneas referidas estão em causa, por um lado, pedidos
de “reconhecimento de situações jurídicas subjetivas diretamente decorrentes de
normas jurídico-administrativas ou de atos jurídicos praticados ao abrigo de
disposições de direito administrativo” e, por outro, pedidos de “reconhecimento
de qualidades ou do preenchimento de condições”. Este duplo alcance advém da anterior
ação de reconhecimento de direitos e interesses legítimos[3]
que, dada a sua ambiguidade, acabou por desaparecer para dar lugar à
consagração legal ora em análise[4].
A anterior ação só parcialmente encontra correspondente, uma vez que admitia
que, para além de ações meramente declarativas, se emitissem sentenças
condenatórias e constitutivas para reconhecimento destas posições jurídicas dos
particulares.
A ação antepassada das alíneas
a) e b) do artigo 37.º/2, CPTA, teve uma importância fundamental no processo
administrativo, porquanto veio atender à particular necessidade de reger as
relações dos particulares com a Administração (que era até então escassa, dada
a história do Contencioso Administrativo e a constante promiscuidade entre o
administrar e o julgar e os privilégios que eram concedidos à Administração em
detrimento dos particulares). Nas palavras de Sousa Fábrica[5]
«é uma verdade de todos os tempos que o conceito de ação [administrativa] se
situa no núcleo do relacionamento entre interesses individuais e interesses
públicos, entre direito subjetivo e objetivo, enfim, entre o indivíduo e o
Estado». E esta continua a ser uma verdade incontornável, porquanto cada vez
mais se estabelecem relações entre a Administração e os particulares e, tanto os
atos da Administração restringem a liberdade dos particulares, como a própria
atuação dos particulares pode causar danos à Administração. Todavia, nesta
relação, houve desde sempre uma parte mais fraca: o particular e tanto mais
sendo a história do Contencioso Administrativo como foi. Daí a importância
desta ação, que veio talvez pôr um ponto final nos privilégios administrativos.
Uma norma que seja atributiva de poderes à Administração toma também em
consideração, seja de modo direto ou indireto, os interesses privados,
estabelecendo formas do seu relacionamento com os interesses públicos,
modelando-os ou sacrificando-os até e, daí, surgir a necessidade de o
particular fazer notar a sua presença, dizendo “eu tenho uma situação jurídica
a tutelar!”.
Esta ação surge como consagração
da exigência constitucional de tutela jurisdicional efetiva dos particulares[6]
(vide artigos 20.º/5 e 268.º/4, CRP),
enquanto imposição derivada da justiça material, no sentido de ter que se
recorrer a um processo de ponderação em concreto dos vários interesses
envolvidos, sejam eles públicos ou privados ou ambos.
Retomando agora o tempo
presente, as sentenças ora em análise visam, somente, o reconhecimento da
existência ou inexistência de direitos ou factos e, logo, preveem a emissão de
sentenças meramente declarativas ou de simples apreciação. As ações de simples
apreciação visam apenas que o tribunal declare a existência ou a inexistência
de um direito ou de um facto. Não se pede que o tribunal condene o réu na
realização de uma qualquer prestação. Não se pede que o réu seja condenado no
cumprimento de uma prestação exigível nem que, cumulativamente, a decisão
judicial crie um efeito jurídico novo[7].
Assim sendo, compreende-se a exigência feita pelo artigo 39.º, CPTA de um
interesse processual específico, sob pena de se “abusar” do processo
administrativo, dado que, nas palavras de Vieira de Andrade «[nas ações
declarativas] predomina , em vez de uma necessidade de reação, uma necessidade
de prevenção». Deste modo, para “usufruir” deste tipo de ações ter-se-á que
invocar, para além da normal legitimidade processual, uma utilidade ou vantagem
imediata na declaração judicial pretendida. Assim, o artigo prevê algumas
situações em que existirá esse interesse processual, a saber: «[1] por existir
uma situação de incerteza[8],
[2] de ilegítima afirmação por parte da Administração, [3] da existência de
determinada situação jurídica, ou [4] o fundado receito de que a Administração
possa vir a adotar uma conduta lesiva, fundada numa avaliação incorreta da
situação jurídica existente».
O professor Aroso de Almeida[9]
enquadra, ainda, no seio desta ação as ações dirigidas à declaração de nulidade
dos contratos cuja apreciação se encontra submetida à jurisdição
administrativa, assim como as ações de interpretação de contratos, em que haja
que obter do tribunal o esclarecimento do sentido controvertido de determinadas
cláusulas contratuais (que se subsumirá a uma situação de incerteza, prevista
no artigo 39.º).
O professor Vasco Pereira da
Silva[10]
assume uma posição algo crítica quanto a esta ação de reconhecimento, não pelo
seu conteúdo, mas sim pela sua construção jurídica pelo legislador administrativo,
senão veja-se: no que concerne à alínea a), Pereira da Silva discute se o que
está em causa são “atos jurídicos” (como o artigo referencia) ou se o
legislador queria antes referir-se a “atuações juridicamente relevantes” e
conclui por esta última alternativa, afirmando que, quanto à primeira, existe
uma reserva para a ação administrativa especial. Quanto à alínea b) do mesmo
artigo, o professor refere-se a uma sobreposição em face da alínea anterior,
porquanto, mormente acaba por ter a mesma previsão que a a), até porque,
atendendo à forma como foi construída essa alínea, dir-se-á que dado o seu
caráter algo genérico, tudo quanto de pretensões subjetivas se trate, com vista
à emissão de sentenças meramente declarativas, caberá ali (mas isto é só um comentário
lateral).
Críticas formais à parte (com as
quais aliás concordamos inteiramente), o que é certo é que, como foi referido,
esta ação tem um passado bastante importante e um presente muito marcado por
essa história. Resta saber como será o futuro numa sociedade em que há cada vez
mais envolvência entre a Administração e os particulares.
Para rematar o comentário,
deixamos um exemplo dado pelo professor Vasco Pereira da Silva (no mínimo
curioso) e que marca bem o contexto desta ação: o senhor X inscreveu-se num
Curso de Pós-graduação em Direito e comunicou-o ao superior hierárquico. A
partir do momento em que essa comunicação foi feita, sempre que chegava a hora
de X sair para ir para as aulas, o superior trazia-lhe uns trabalhos “de última
hora, urgentes” a realizar no momento, não permitindo assim a X que pudesse ir
assistir às aulas do Curso.
Beatriz Santos (n.º19519)
[1]
ANDRADE, Vieira de; “A Justiça Administrativa (Lições); Almedina, 11ªedição,
2011 (pp.146-148 e 158-162)
[2]
SILVA, Vasco Pereira da; “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise:
ensaio sobre as ações no novo processo administrativo”; 2ªedição, Almedina,
2009 (página 438)
[3] Que
constava dos artigos 69.º e ss., LEPTA
[4]
Luís Sousa da Fábrica referia-se, em 1987, exatamente a esta possibilidade
dizendo que «a ação de reconhecimento de direitos e interesses legalmente
protegidos, pela sua ambiguidade e concisão da regulamentação, será o que a
jurisprudência dela fizer» (página 50, «A ação para o reconhecimento de
direitos e interesses legalmente protegidos», Luís Manuel da Costa Sousa da
Fábrica, Lisboa, 1987). Também João Caupers e João Raposo criticavam aquela
opção legal, afirmando que a mesma enfermava de dois vícios: por um lado, o
caráter residual; por outro, o caráter complementar (em “Contencioso
Administrativo: anotado e comentado”, João Caupers e João Raposo, Aequitas,
Editorial Notícias, Coleção Commentarium, 1994). O primeiro poder-se-á dizer
ter sido combatido, o segundo nem tanto.
[5]
«A ação para o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos»,
Luís Manuel da Costa Sousa da Fábrica, Lisboa, 1987
[6]
Vide citação de Gomes Canotilho: «a
qualquer ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos e a qualquer
ilegalidade da Administração deve corresponder uma forma de garantia
jurisdicional adequada» em obra de João Caupers e João Raposo, “Contencioso
Administrativo: anotado e comentado”, Aequitas, Editorial Notícias, Coleção
Commentarium, 1994
[7]
MARQUES, J. P. Remédio; “Ação declarativa à luz do Código revisto”, Coimbra
Editora, 3ªedição, 2011
[8]
O prof. Mário Aroso de Almeida, densificando este conceito de incerteza, afirma
que serão situações nas quais «a lei imponha diretamente, sem necessidade da
mediação de ato administrativo, limites, restrições ou condicionamentos aos
direitos individuais cujos contornos não sejam claros e, por isso, careçam de
concretização» (vide nota de rodapé
número 51, página 113, ALMEIDA, Mário Aroso de; “Manual de Processo
Administrativo”, Almedina, 2012).
[9] ALMEIDA,
Mário Aroso de; “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2012 (página
114)
[10] Ob. cit.
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