quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Arbitrariedade do T.C.A.?


O presente comentário tem como base a análise de um acórdão (1) cuja história, muito resumidamente, é a seguinte: um aluno de um colégio privado, que na altura frequentava o 11º Ano, obteve a classificação de 8 valores no final da frequência anual da disciplina de Português A. O encarregado de educação do aluno em causa, e representante legal, descontente com a classificação obtida pelo seu filho (que o impedia de transitar de ano), utilizou todos os meios administrativos possíveis com vista à revisão da nota, mas sem êxito. Por sua vez, o Presidente do Conselho Executivo do colégio, em resposta ao pedido de revisão, confirmou a nota que tinha sido atribuída ao aluno; na sequência desta decisão, foi pedida a suspensão da eficácia da decisão do Presidente. O Tribunal Administrativo de Circulo declarou-se incompetente para conhecer da matéria por considerar que o acto, cuja suspensão se requeria, era de direito privado. No entanto, o Tribunal Central Administrativo afirmou-se competente para conhecer do pedido e decretou a suspensão provisória do acto do Presidente do Conselho Executivo, condenando o colégio a promover todas as diligências necessárias à inscrição do aluno na disciplina de Português do 12º Ano.

Do breve sumário do acórdão, vários problemas podem desde logo ser levantados:
- Quanto à competência da jurisdição administrativa para avaliar actos praticados por entidades de direito privado, ainda que exerçam funções de relevo público (problemática do exercício privado de funções públicas)
- A possibilidade de suspensão de actos de carácter negativo, e a sua admissibilidade, tendo em conta que a decisão foi praticada por um órgão da administração escolar de um colégio privado
- A actuação do TCA em sede de tutela cautelar face aos fundamentos legais para a concessão de providências (e a admissibilidade da substituição do pedido de suspensão da eficácia pela concessão de tutela antecipatória)
- As consequências do decretamento da suspensão da decisão em causa

Quanto à primeira questão, parece que a decisão do TCA foi a mais correcta. Não obstante estarmos perante um acto emitido por uma escola privada, a avaliação dos alunos que pertencem a escolas particulares pode ser sindicada no Contencioso Administrativo. Sendo uma instituição de ensino particular, não deixa de desempenhar uma função de interesse público - o ensino. É de notar que existe sempre um nível mínimo de tutela por parte do Estado no que diz respeito às instituições de ensino particular, no que respeita ao controlo de legalidade; neste caso, não parece haver um nível de ingerência do Estado que possa levantar problemas como, por exemplo, a invasão na esfera de autonomia pedagógica da escola em questão. Deste modo, não parece correcto afirmar que a jurisdição administrativa não tenha competência para avaliar da legalidade do acto, por ter sido emitido por uma entidade de direito privado e, como tal, considera-se que o acto em questão tem natureza de acto administrativo. Dito isto, é importante referir que o Despacho do Director Pedagógico da escola, despacho esse que indefere o pedido de revisão de uma classificação negativa atribuída ao aluno, constitui um acto administrativo recorrível.

Em segundo lugar, devemos atentar sobre o carácter negativo do acto e da possibilidade do mesmo ver a sua eficácia suspensa. A suspensão visa assegurar a utilidade da futura sentença (2), ou seja, a suspensão não tem como objectivo bloquear os efeitos do acto impugnado mas determinar a produção dos efeitos que este acto havia recusado ao requerente. Neste caso, a suspensão pretendia um efeito útil concreto: o de possibilitar a frequência do aluno no ano seguinte à disciplina de Português. Deste modo, não sabemos se será possível qualificar este acto de indeferimento como exclusivamente negativo. A função da suspensão não se traduz na satisfação imediata dos interesses violados, mas em salvaguardar e garantir que a sentença final não se tornará inútil, de forma a permitir salvaguardar a eficácia do controlo de legalidade que o juiz exerce em sede de anulação. É por isso que as providências de carácter conservatório têm um regime diferente, menos exigente, que as providências antecipatórias.
Como se sabe, a decisão cautelar deve preencher vários requisitos: 1) o periculum in mora, ou perigo de demora, quando esteja em causa um prejuízo de difícil reparação, no qual o juiz deverá fazer um juízo de prognose de acordo com a situação futura (hipotética); 2) o fumus boni iuris, ou aparência de bom direito, segundo o qual o juiz tem o dever de (em termos sumários) avaliar a probabilidade de existência do direito invocado pelo particular ou da ilegalidade que diz existir. A lei opta por fazer uma graduação em função do tipo de providência requerida, sendo que, no caso de adopção de uma providência antecipatória acolhe um regime mais exigente com base num critério de probabilidade, ao invés do juízo negativo de não improbabilidade (non fumus malus) no caso das providências conservatórias; 3) ponderação de interesses.

Como refere Cláudio Monteiro (3), o critério do fumus boni iuris não está consagrado no nosso ordenamento jurídico como condição de procedência do pedido de suspensão de eficácia. O que releva não será tanto o conteúdo positivo ou negativo do acto, mas sim o conteúdo do tipo de interesse apresentado pelo particular, ou seja, um interesse na conservação da situação jurídica.
Acontece que, neste caso, o Tribunal acabou por exceder os limites da sua competência, uma vez que foi além da concessão de mera tutela conservatória que a suspensão da eficácia possibilita, concedendo uma medida cautelar diversa da requerida. Tudo isto poderia levar a presumir a atribuição de uma nota positiva ao aluno, ainda que provisoriamente, o que poderia levantar inúmeros problemas. Para a concessão de uma tutela antecipatória é necessário respeitar todos os pressupostos de aplicação da mesma, com especial atenção para a ponderação de interesses envolvidos, para que a mesma não se torne excessiva. De acordo com a situação relatada no acórdão, deveria ter sido feita uma ponderação equilibrada dos interesses em causa, contrapondo os eventuais riscos que a concessão da providência envolveria em relação aos danos que a sua recusa poderia trazer ao requerente. E mais: as providências devem limitar-se ao necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente e devem ser concedidas exclusivamente para esse efeito.
Não nos parece que a suspensão dos efeitos de uma classificação negativa numa disciplina caracterize o conceito de grave lesão do interesse público, nem mesmo que o prestígio da escola possa ser posto em causa pelo sucedido. A própria base probatória de um pedido de tutela conservatória é distinta daquela que fundamenta um pedido antecipatório. No caso em apreço o requerente limitou-se a invocar o prejuízo irreparável caso a decisão de recusa de alteração da classificação se mantivesse, justificação que seria bastante para fundamentar a decisão quanto à suspensão do acto, mas insuficiente para decretar uma providência de carácter antecipatório. Ainda assim, o TCA resolveu decidir pela última, por considerar necessária a alteração provisória da situação.

Por fim, importa ainda ter em conta as possíveis consequências da suspensão da decisão em causa. Supondo que a decisão de recurso de anulação é favorável ao aluno, isto é, o acto de indeferimento do pedido de revisão de nota é revogado, a principal consequência seria a condenação da escola a atribuir outra classificação ao aluno, com todos os problemas que uma revisão da classificação pode levantar: passados tantos anos quem faria essa classificação? O aluno, possivelmente a frequentar o ensino superior, estaria em condições de desigualdade perante os alunos que frequentam a disciplina em questões?
Por outro lado, se a decisão for desfavorável ao aluno, significa que o aluno continua com a disciplina de Português do 11º Ano por fazer, e como tal, a nota de português do 12º Ano não seria válida, assim como tornaria o (possível) ingresso na faculdade inválido.

Em suma, verificamos que o decretamento provisório de uma providência antecipatória não acautela de forma eficaz o direito ao ensino do aluno. O TCA, neste caso em concreto, vai longe demais: não só ultrapassa os limites que a suspensão da eficácia possibilita, como demonstra um excesso de zelo na tutela dos interesses do recorrente.


Joana Martins

                                              

(1) Acórdão nº 11391/02 de Tribunal Central Administrativo Sul, 06 de Junho de 2002
(2) Maria Fernanda Maçãs, “a suspensão jurisdicional da eficácia de actos administrativos”
(3) in “suspensão de eficácia de actos administrativos de conteúdo negativo”, págs. 107 e ss.



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