segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Breve análise Jurídico-descritiva da impugnação dos actos administrativos - O Antes e o Depois da Reforma


1- No trabalho em apreço, pretendemos contribuir com uma analise sintética sobre a impugnabilidade dos actos administrativos , centrando o nosso método analítico nos caminhos adoptados pelo legislador português na Reforma de 2004. Com isto , e feita esta brevíssima apresentação passamos ao elemento nevrálgico que suscitou a realização do presente trabalho.

2- A impugnação de actos administrativos encontra-se englobada no âmbito da acção administrativa especial e vem regulada nos artigos 50 e ss do Código de processo nos tribunais administrativos (CPTA) . Esta figura apresenta-se como sendo , a sucessora do Recurso de Anulação , que já demonstrava sinais claros de decadência, nomeadamente devido ao seu âmbito bastante restritoCabe-nos tecer algumas considerações sobre este recurso , que na verdade não é recurso , e não é (somente) de anulação . O Recurso é uma acção , visto tratar-se da primeira apreciação jurisdicional e não de apreciação de segunda instância, ademais não se trata de uma "acção" meramente de anulação , pois esta "acção" podia desencadear efeitos de natureza confirmativo e repristinatório. [1]

3- A reforma de 2004 , decidiu prescindir desta figura , dando lugar a uma acção de impugnação de actos administrativos, possibilitando a apreciação da integralidade da relação jurídica administrativa, a propósito da impugnação de um acto administrativo lesivo, consagrando a admissibilidade generalizada de cumulação de pedidos ( art 4 e 47 do CPTA) [2]. Admitindo a conexão com qualquer dos pedidos principais de quaisquer outros que com eles apresentam uma relação material de conexão, designadamente o de condenação na reparação dos danos resultantes da actuação ou omissão ilegal [3] . Voltando aos tempos do recurso de anulação, a maioria da doutrina entendia que o único pedido admissível era o da anulação do acto administrativo , esse no entanto não era o entendimento da nossa regência que defendia de modo árduo a necessidade de englobar nas sentenças do recurso de anulação, para alem do efeito anulatório, um efeito repristinatorio . 


4- Feito este brevíssimo enquadramento histórico iremos passar a analise dos pressupostos processuais da acção de impugnação : 

            1) Conceito de acto administrativo impugnável
            2) Legitimidade 
            3) Prazo


1) É de salientar que para definirmos o conceito de acto administrativo impugnável teremos que nos auxiliar da própria definição de acto administrativo que nos termos do art 120 CPA ,que se refere as decisões materialmente administrativas de autoridade que visem a produção de efeitos numa situação individual e concreta. No entanto o conceito de acto administrativo impugnável não se coaduna com o conceito de acto administrativo sendo por um lado mais abrangente , e por outro mais restrito. Mais abrangente , na medida em que não depende exclusivamente da qualidade administrativa do seu autor (art 51 nº2 CPTA) . E mais restrito , visto que só tem em atenção as decisões administrativas com eficácia externa  (art 51 nº1 CPTA) [4]. Debruçaremos de seguida a nossa analise sobre o artigo 51/1 do CPTA . Tendo em conta o elemento literal relativamente a previsão da norma , parece-nos que o critério mais amplo é o da eficácia externa , desprezando o critério da susceptibilidade de lesão de direitos, no entanto estamos perante dois critérios autónomos , o que vem ser sustentado pelo próprio artigo 54 do CPTA , que prevê a impugnação de actos desprovidos de eficácia interna. Esta é a interpretação subjectivista feita pela regência que não é , de todo, o entendimento da maioria da doutrina. [5] .


Apesar da clareza da redacção do artigo, há quem entenda que o artigo 51 do CPTA tem que ser interpretado de forma restritiva, apesar de concordarem que , e passo a citar, "o CPTA não exige (...) em termos gerais , que os actos administrativos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa " [6]. Esta argumentação surge devido ao afastamento por parte do CPA da regra do recurso hierárquico necessário (meio de impugnação de actos administrativos praticados por um órgão subalterno perante o seu superior hierárquico, com o objectivo de que este proceda à sua revogação ou substituição). Ora , segundo os ilustres , apesar da revogação da regra geral , as demais disposições avulsas que consagrassem tais exigências teriam que ser cumpridas , dizendo que " as decisões administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que esteja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada"  [7] [8]. Ora não me parece que este seja o entendimento mais razoável, perfilhamos ,na temática em questão, a posição do Prof. Vasco Pereira da Silva [9] . O Ilustre professor apresenta uma serie de argumentos contra esta posição , nomeadamente um argumento de ordem sistemático , de compatibilização da "regra geral" de acesso à justiça com as regras especiais que manteriam tal exigência. Ora se o intuito do recurso hierárquico era  permitir a impugnação do acto administrativo e se agora se consagra a possibilidade de impugnação imediata do acto , qual é o utilidade prática de invocar as "regras especiais" que consagram o regime precedente? a resposta é a seguinte : Nenhuma!. Outro dos argumentos invocados é o argumento formal , diz-se que o CPTA revogou a regra geral do recurso hierárquico do CPA , mas não as "regras especiais". Mas o professor pergunta-se , se a revogação da "regra geral" não esvazia o conteúdo das ditas "normas especiais". Ora no meu entender esvaziam totalmente, a incongruência intelecto-cognitiva é flagrante , visto que ,para os ilustres, passou a ser "desnecessário" ,mas que pode continuar a ser exigido como condição prévia de impugnação, por conseguinte, e passo a redundância,  estamos perante uma figura que sendo desnecessária , pode ser necessário. De seguida , o professor Vasco Pereira da Silva invoca um argumento derivado da própria Constituição , dizendo que justificar a restrição ao acesso à Justiça Administrativa depois da consagração da desnecessidade  de impugnação administrativa prévia , é um desafio aliciante. Por ultimo, o professor fala do principio da promoção do acesso a justiça (art 7 CPTA) e da prevalência do mérito sobre a legalidade (art 8 nº2 CPTA) . Concluindo que o recurso hierárquico necessário  tem que ser revogado expressamente de modo a proteger o próprio tráfego jurídico. 

2) Quanto a legitimidade, a regra geral encontra-se prevista no artigo 9 do CPTA , que é preciso coadunar com as regras especiais dos artigos 55 e ss do CPTA , relativamente a acção de impugnação. Ora , a legitimidade activa para a impugnação de actos administrativos é concedida[10] :
       
 a) no âmbito da "acção particular" - a quem seja titular de um interesse directo e pessoal (art 55 nº1 a)) ; as pessoas colectivas privadas que preenchem os requisitos do art 55 nº1 al c) ; as pessoas colectivas publicas actuando em defesa de interesses próprios 

       b) no âmbito da "acção popular "    - aos cidadãos eleitores das comunidades locais, para impugnação dos actos ;dos respectivos órgãos autárquicos, independentemente de terem um  interesse directo e pessoal na anulação. (acção popular correctiva); Pessoas e entidades mencionadas no artigo 9 nº2 do CPTA (acção popular social)

        c) no âmbito da "acção publica"   - o Ministério Publico para defesa da legalidade (art 55 al b) ; - aos Presidentes dos órgãos colegiais nos casos previstos do art 55 al e)


Uma ultima referência , relativamente ao artigo 57 do CPTA que se consubstancia numa imposição legal de litisconsórcio passivo necessário , sempre que houver contra-interessados , ou seja sempre que é intentada uma acção em que o autor omite a existência das partes que tenham particular interesse na manutenção do  acto administrativo , a acção é improcedente.


3) Quanto ao prazo para intentar a acção , encontramos no artigo 58 do CPTA a tal oportunidade para impugnar os actos administrativos. Ora , segundo o artigo 55/1 do CPTA diz-nos que "a impugnação de actos nulos ou inexistentes não estão sujeitos a prazo "  quanto a isto , não apresentamos nenhuma ressalva. No artigo 55/2 CPTA , encontramos "Salvo disposição em contrario , a impugnação de actos anuláveis tem lugar no prazo de um ano , se promovida pelo Ministério Publico e três meses, nos restantes casos " . Ora isto surge porque o Ministério Publico é o principal precursor da legalidade , daí a atribuição de um prazo mais lato. Sendo que a contagem é feita tendo em conta o regime aplicável no Código Processo Civil ( ou seja três meses corridos) .












[1] Vasco Pereira da Silva "O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, ensaio sobre as acções no novo processo administrativo"

[2] Vasco Pereira da Silva "O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, ensaio sobre as acções no novo processo administrativo"

[3] Vieira de Andrade , " A Justiça Administrativa"

[4] Vieira de Andrade , " A Justiça Administrativa"

[5] Vasco Pereira da Silva "O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, ensaio sobre as acções no novo processo administrativo"

[6] Assim, Mario Aroso De Almeida "O novo regime do P. nos T. Administrativos" , Mario Aroso de Almeida, "Manual de Processo Administrativo"

[7]  Vieira de Andrade , " A Justiça Administrativa"


[8] Assim, Mario Aroso De Almeida "O novo regime do P. nos T. Administrativos" , Mario Aroso de Almeida, "Manual de Processo Administrativo"

[9] Vasco Pereira da Silva "O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, ensaio sobre as acções no novo processo administrativo" ,    Vasco Pereira da Silva "Temas e Problemas de Processo Administrativo" , 

[10] Vieira de Andrade , "A Justiça Administrativa" 




                                                                                                                           


                                                                                                                                 Anthony Meira (nº19513)

sábado, 27 de outubro de 2012

Actos internos: os pareceres vinculativos em especial



1.      A faculdade de impugnar um acto administrativo pressupõe, em primeiro lugar, que:
a)        O acto impugnado seja efectivamente um acto administrativo
b)        Que exprima um comando positivo[1] [2].
O nosso ponto de partida é, assim, a noção de acto administrativo que o art. 120º do CPA nos oferece[3].  O ponto fulcral do preceito em apreço é o conceito de decisão. É este que  permite separar o acto administrativo das meras declarações de ciência e opiniões do conceito de acto e determina a inimpugnabilidade, nomeadamente dos pareceres não vinculativos (porquanto são actos (meramente) instrumentais[4]). Uma decisão pressupõe uma regulação definitiva da situação jurídica em causa, uma ingerência na esfera jurídica do interessado. Observando a norma do 120º do CPA, vemos que não adopta a noção ampla de acto administrativo que Marcello Caetano defendia, já que afasta do conceito todas aquelas formas de actuação da Administração que não se consubstanciem numa decisão.

2.   “Ainda que inseridos num procedimento administrativo, são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos”, diz-nos o art. 51º/1 do CPTA. Numa primeira análise poderíamos pensar que apenas os actos com eficácia externa podem ser impugnados. Era o que entendia a doutrina tradicional portuguesa, elaborada por Marcello Caetano[5] e apoiada pelos defensores da noção germânica (restrita) de acto administrativo, como Rogério Soares e Sérvulo Correia[6]. Esta apreciação não nos parece correcta, desde logo porque o CPTA confere legitimidade a órgãos para impugnar actos administrativos de outros órgãos, ainda que dentro da mesma pessoa colectiva (art. 55º/1-d). Seria incoerente atribuir legitimidade a esses órgãos e simultaneamente não permitir a impugnação de actos intra-administrativos[7]. Seguir esta posição levaria a que apenas se pudessem impugnar actos com efeitos múltiplos, isto é, actos que afectassem de alguma maneira aquele órgão, mas também algum particular, para que fossem considerados como actos externos. Defender o oposto, visando a consagração da justiciabilidade interorgânica justifica-se essencialmente pela actual dimensão e organização da Administração, pois temos dentro de cada pessoa colectiva vários órgãos com competências próprias prosseguindo interesses específicos. Esta distribuição de competências leva a um choque das esferas de acção causando conflitos entre os mesmos[8]. Para nós, e usando as palavras de Mário Aroso de Almeida, “O conceito de acto administrativo cobre todos os actos jurídicos concretos com conteúdo decisório, mediante os quais a Administração, no exercício da função administrativa, exprima a sua vontade de determinar o rumo de acontecimentos ou o sentido de condutas a adoptar, incluindo aqueles que sejam produzidos no âmbito de relações intra-administrativas e interorgânicas”[9]. Numa perspectiva interessante, Vasco Pereira da Silva distingue os casos em que a acção de impugnação de actos administrativo tem como função tutelar um direito do particular, nos quais basta que esse acto seja lesivo (sendo indiferente se o acto é interno ou externo), dos casos em que a acção é de defesa de legalidade, exigindo-se a eficácia externa do acto recorrido[10].

3.    Com esta análise podemos já perceber que a maioria dos actos internos que não eram sindicáveis através do recurso de anulação[11] permanecem fora do âmbito da nova acção especial de impugnação de actos administrativos, ainda que por um outro motivo. Entendia-se que eles não eram sindicáveis jurisdicionalmente porque careciam de definitividade material, não produzindo efeitos em relação a terceiros, não regulando definitivamente aquela situação (os efeitos apenas se produziam dentro da pessoa colectiva do órgão que praticava o acto). Actualmente dir-se-á que eles não são impugnáveis por não configurarem decisões e não se subsumirem ao próprio conceito de acto administrativo (art. 120º CPA). Encontram-se nesta posição os pareceres não vinculativos e a maior parte dos actos preparatórios dos procedimentos administrativos. Paralelamente, todas as formas de actuação da Administração que sejam consideradas pela lei como actos administrativos (art. 120º CPA) são impugnáveis.

4.   Questão diferente é o aferimento da legitimidade para a impugnação de um acto administrativo em concreto. Aqui já não estamos a apreciar um requisito intrínseco ao acto administrativo, mas a relação entre o sujeito que o impugna e o respectivo acto. Significa isto que da não impugnabilidade de um acto por um particular não se pode concluir que o acto é inimpugnável.  O particular poderá não possuir legitimidade (art. 55º/1-a) para impugnar aquele acto interno, mas tê-la outro órgão da mesma pessoa colectiva (art. 55ª/1-d). A legitimidade é externa à substância do acto, ainda que seja essencial para que a impugnação ocorra.

5.       O parecer vinculativo possui um carácter prejudicial relativamente ao acto final praticado pelo órgão com competência para o mesmo. Falta-lhe autonomia funcional, porquanto necessita da mediação de outro acto (final) para regular uma determinada situação da vida. Podemos distinguir dois poderes que o órgão emissor do parecer vinculativo pode ter:
a)      Poder Dispositivo: o órgão poderá estipular o conteúdo do acto que o outro órgão irá praticar.
b)     Poder de controlo/ Poder preclusivo: o órgão apenas irá examinar o conteúdo do acto, não podendo ele próprio conformar o seu teor. Podemos também  chamá-lo de poder preclusivo, pois o órgão tem a faculdade de romper com o procedimento administrativo e obrigar que não haja a emissão de nenhum acto.

Sobre a natureza e função dos pareceres vinculativos, várias teses têm sido defendidas, nomeadamente[12]:
a) Meros actos instrumentais, desempenhando uma função consultiva e, por isso, insusceptíveis de impugnação, sendo apenas o acto final impugnável;
b)   Actos que, não sendo uma simples emanação da função consultiva do órgão, teriam já um conteúdo pré-decisório. Destarte, seriam inimpugnáveis pois apenas teriam eficácia interna (Marcello Caetano[13]);
c)      A par do acto final, o parecer configuraria um acto complexo. Seria, assim,  um acto praticado em co-autoria, pois eram necessárias duas declarações de dois órgãos diferentes para a prática do acto (Diogo Freitas do Amaral[14]);
d)     O parecer funcionaria como uma espécie de controlo prévio daquele órgão sobre o exercício das competências do órgão decisor;
e)      Um acto completamente autónomo do acto final, que produz efeitos externos e, consequentemente, é imediatamente recorrível (Vasco Pereira da Silva[15]).

6.    Em nossa opinião, no parecer vinculativo apenas existe uma obrigação dirigida ao órgão decisor para que ele cumpra no sentido que foi decidido. Os pareceres vinculativos não são uma emanação da função consultiva do órgão, pois eles prejudicam e conformam a competência do órgão final, logo, não se traduzem numa mera opinião. Parece-nos também que o parecer vinculativo consubstancia um acto meramente interno, não tendo efeitos intersubjectivos. O parecer permite estabelecer uma relação entre o órgão emitente e o órgão com competência para a prática do acto final, “incorporando” aquele neste. Ao contrário de Vasco Pereira da Silva[16], parece-nos que um parecer vinculativo não lesará (em princípio) per si, os direitos dos interessados, pois isso apenas sucederá se o acto final for efectivamente praticado.

7.        A noção que nos é dada pelo art. 120º CPA engloba perfeitamente os pareceres vinculativos, já que estes possuem carácter decisório. Produzindo efeitos apenas relativamente a outro órgão, serão naturalmente actos internos, no sentido de não se projectarem para além da pessoa colectiva, não atingindo particulares. O destinatário é o órgão que praticará o acto final, sendo a actuação deste que irá produzir efeitos em relação aos particulares. A eficácia meramente interna não obsta à impugnabilidade do acto e isso é admitido expressamente no art. 55º/1-d do CPTA. Destarte, os particulares não terão, r.g., legitimidade para impugnar os pareceres, pois estes não lhes causam uma desvantagem imediata[17]. Parece-no, no entanto, que o aqui efectivamente está em causa é o interesse processual do autor. Mário Aroso de Almeida distingue entre a legitimidade propriamente dita, que consiste no interesse pessoal (sendo necessário que a vantagem que o autor retira da acção atinja a sua esfera jurídica), do interesse em agir, que consiste no interesse directo (sendo necessário que a vantagem seja imediata e não meramente hipotética)[18]. No caso do parecer, cremos que o problema seja a falta de interesse processual, pois com a emissão do parecer apenas podemos encontrar uma mera hipótese de lesão, já que a lesãoefectiva” só poderá ocorrer com o acto final.


[1] Contra, Vieira de Andrade, A justiça Administrativa, 11º ed, 2011, p. 187-189. O A. considera que o particular pode ter um interesse relevante em não pedir a condenação à prática do acto legalmente devido pela Administração, admitindo que o particular apenas o anule. O autor poderá ter interesse em que o acto seja só posteriormente praticado.
[2] Sérvulo Correia, “O incumprimento do dever de decidir”, CJA nº 54, p. 23 e ss, considera que com a implementação do meio “condenação à prática do acto legalmente devido”, o acto administrativo de carácter negativo perdeu a essência de acto administrativo. Alega que o respectivo meio processual configura o objecto processual por referência à pretensão do interessado e não ao acto negativo. Pensamos que é necessário distinguir o plano processual e o plano substantivo e neste último ele continuará sempre a ser considerado um acto administrativo, pois define a situação jurídica do interessado; tem um carácter decisório (art. 120º CPA). Neste sentido, Márion Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2012, p. 290 e ss, Vieira de Andrade, A justiça Administrativa, p. 187
[3]  Nem sempre foi assim tão pacífica a coincidência entre a noção substantiva e a noção processual de acto administrativo – Tal coincidência não era, de facto, aceite por Marcello Caetano. No seu Manual de Direito Administrativo, I, p. 428, o A. adoptava um conceito amplo de acto administrativo em termos substantivos, definindo-o como a “conduta voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e para prossecução de interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos jurídicos num caso concreto”. No plano contencioso entendia que só os actos definitivos e executórios eram impugnáveis, cit, p. 463 e ss.
[4] Cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol 2, p. 269 e ss
[5] Marcello Caetano, Manual, I, p. 463 e ss
[6] Rogério Soares, Direito Administrativo, 1978, p. 51 e ss, apud Mário Aroso de Almeida, “Considerações em torno…”, p. 263, Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, 1982, p. 289
[7] No sentido do texto, v.Mário Aroso de Almeida, Manual, p. 276 e ss. e Pedro Gonçalves, “A justiciabilidade dos litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva”, CJA nº 35, p. 10 e ss
[8] A legitimidade (art. 55ª/1- d) depende, todavia, da titularidade pelo órgão de um direito subjectivo ao exercício da sua competência sem perturbação de outros órgãos. Naturalmente, é um direito meramente interno, exercitável diante de outro órgão e não perante uma entidade estranha à pessoa colectiva, formando apenas uma relação interorgânica. Destarte, este direito subjectivo só existe se aquele órgão defender interesses específicos dentro da pessoa colectiva. Este reparo prova que, em princípio, só os órgãos independentes poderão ter legitimidade para a impugnação, pois v.g um subalterno nunca terá um interesse diferente do superior hierárquico. Sobre os litígios interorgânicos, Pedro Gonçalves, “A justiciabilidade…”, p. 10 e ss
[9] Mário Aroso de Almeida, “Considerações em torno do conceito de acto administrativo impugnável”, Estudos em Homenagem ao prof. Doutor Marcello Caetano, 2, 2001, p. 272.
[10] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo, p. 344.
[11] Criticando a denominação antiga de “recurso de anulação”, Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo, p. 319-321, afirmando que: 1) não era um recurso; b) nem de anulação. Não era um recurso porque o tribunal declarava o direito aplicável pela primeira vez. Não era de anulação, pois também havia acções de simples apreciação da nulidade e inexistência.
[12] Sobre a função e a natureza do parecer vinculativo ver, Pedro Gonçalves, “Apontamento sobre a função e a natureza dos pareceres vinculativos”, CJA 0, 1996, p. 3 e ss
[13] Marcello Caetano, Manual, I, p. 138
[14] Freitas do Amaral, Curso, vol 2, p. 271 e ss
[15] Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, p. 705
[16] Vasco Pereira da Silva, Em Busca Do Acto Administrativo Perdido, 1996, p. 705
[17]Mário Aroso de Almeida, “Considerações em torno…”, p. 292, fala num afloramento da regra geral da inimpugnabilidade dos actos ineficazes prevista no art. 54º.
[18] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, p. 235 e ss





 Daniel Bogalheiro (19565)

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Colaboração e Reacção: Uma Análise Comparativa dos Regimes Francês e Alemão Relativamente à Legitimidade Activa Para a Impugnação de Actos Administrativos


Introdução
A doutrina jusadministrativista fala da existência de um modelo de contencioso administrativo objectivo e subjectivo, o que terá importância a vários níveis, mas especialmente no que toca à legitimidade activa de quem pretenda impugnar um acto administrativo (passe a redundância).  No primeiro modelo, o contencioso tem meramente como fim a garantia da legalidade e a prossecução do interesse público, sendo um mero mecanismo de auto-controlo da Administração Pública. O particular, especialmente com a acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos, não está a ver os seus direitos subjectivos defendidos, mas é considerado mais um colaborador no auto-controlo da Administração. No segundo modelo, o objectivo principal do contencioso administrativo em geral, e da acção administrativa especial de impugnação de acto administrativo em especial, é o da tutela dos direitos subjectivos dos particulares nas suas relações com as entidades administrativas – o particular, e os seus direitos, passam a ser a raison d’être do sistema. (in PEREIRA DA SILVA, Vasco, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares, Almedina, Coimbra, 1997, pp 265 ss) Como diz PEREIRA DA SILVA, ‘num contencioso subjectivo a função da legitimidade é apenas, a de fazer a ponte entre o direito subjectivo do particular e a sua posição (...) Assim, parte legítima é todo o indivíduo que alega um direito lesado pela actuação administrativa’, determinando-se ao longo da causa se ele é titular ou não desse direito (in PEREIRA DA SILVA, Para um..., p 269). Num sistema objectivo, onde a impugnação de acto administrativo é vista como uma mera auto-verificação da legalidade, a determinação do acesso aos meios processuais não teria nada que ver com a afirmação de um direito subjectivo lesado. Num sistema objectivo, o interesse acabaria por ser condição da legitimidade – era a legitimidade que constituía o critério de acesso ao juiz e esta era determinada em função do interesse dos particulares. (in PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2009, pp 230 ss)
Passarei agora à análise comparativa entre dois sistemas paradigmáticos que consagram formas ‘quase puras’ das duas doutrinas – o francês e o alemão.

O Sistema Francês
O jusadministrativista francês DEBBASCH classifica as acções administrativas em contentieux objectif e contentieux subjectif. Diz o autor que no primeiro, o requerente invoca a violação da legalidade geral, incluindo-se nele os recours d'annulation, sendo o principal o recours de l'excès de pouvoir (que têm a finalidade de controlar a legalidade e validade dos actos administrativos unilaterais), entre outros. No segundo grupo, o de contentieux subjectif, o requerente invoca um direito subjectivo particular decorrente da sua situação jurídica indiviudal, estando nele incluído o contencioso contratual e a o contencioso da responsabilidade civil. (in DEBBASCH, Charles, RICCI, Jean-Claude, Contentieux Administratif, 7ª Edição, Dalloz, Paris, 1999, pp 608-610). Tanto DEBBASCH como GOHIN, dentro do contencioso objectivo, inserem o contentieux de l’excès de pouvoir, que serve para o controlo externo da actuação administrativa quanto à legalidade de acto administrativo unilateral, resultado de um princípio geral de Direito definido pelo Conseil d’État, que firmou que é uma acção que poderá ter posta mesmo sem texto contra todo o acto administrativo, tendo o objectivo de assegurar o respeito pela legalidade (v. GOHIN, Olivier, Contentieux Administratif, 3ª Edição, Litec, Paris, 2003, pp 189 ss)  vemos já aqui uma forte componente de objectivismo, de considerar o particular um colaborador da administração no respeito pela legalidade. Como já foi citado acima, diz PEREIRA DA SILVA, com razão, que o interesse acaba por ser condição da legitimidade – é a legitimidade que constitui o critério de acesso ao juiz e esta é determinada em função do interesse dos particulares. Será pertinente realçar que os manuais franceses de contencioso administrativo nem falam em legitimidade, só no intérêt à agir en justice (v., p.ex. GOHIN, Contentieux..., pp 218-220 e DEBBASCH, RICCI, Contentieux..., pp 640 ss).
Diz DEBBASCH, a propósito do interesse, que, teoricamente, o requerente que procura controlar a legalidade de um acto administrativo, não deveria ter de demonstrar que ele se encontra numa situação particular relativamente ao acto atacado. Para o autor, o recours pour excès de pouvoir seria potencialmente uma ‘acção popular aberta a todos’. Contudo, tem-se entendido na doutrina e jurisprudência francesa que o requerente tem de justificar a sua acção com um interesse, tendo ele de retirar qualquer efeito útil da decisão, apesar de haver quem diga (HARIOU) que destrói o carácter objectivo do recurso, e quem responda (FOURNIER) que a noção de interesse em agir não é subjectiva e psicológica, mas objectiva e jurídica. Assim, relata DEBBASCH, a doutrina francesa ‘desistiu da tentativa de análise teórica do interesse para se dedicar à sistematização de soluções jurisprudenciais’ (v. DEBBASCH, RICCI, Contentieux..., pp 639-642). O interesse terá de ser directo e pessoal, e poderá ser material ou moral, tendo sempre de ser actual.

Como se pode ver, teoricamente, o sistema francês é altamente objectivista, vendo o particular como um colaborador no controlo da legalidade da actuação da administração. Contudo, a jurisprudência e a doutrina entendem que isto não cria a possibilidade de existência de uma actio popularis geral, limitando, porventura por razões pragmáticas, o interesse (aqui não existindo legitimidade) a um interesse directo, pessoal e actual. A meu ver, a legitimidade é desnecessária neste sistema, e será impreciso falar de tal figura, pois ela só seria compatível com a chamada ‘teoria da possibilidade’ (veremos abaixo), segundo a qual o requerente tem legitimidade se apenas alegar o direito, não tendo de o provar numa fase inicial, o que não se passa no sistema francês. É também um sistema de colaboração, devido ao papel do particular como colaborador na auto-verificação da legalidade, como já foi mencionado supra.

O Sistema Alemão
Como relata SÉRVULO CORREIA (in SÉRVULO CORREIA, J.M., Direito do Contencioso Administrativo, Lex, Lisboa, 2005, pp 102-104 e pp 113-115), o sistema alemão de justiça administrativa é um de tendencial exclusividade da natureza subjectivista da função jurisdicional. No que nos interessa, ou seja, a legitimidade activa no equivalente à acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos e para exigir a prática de acto omisso e resultado, termos que ver o § 42/2 da Verwaltngsgerichtsordung (VwGO). O § 42/2 VwGO circunscreve a legitimidade para a acção judicial destinada a obter a impugnação de um acto ou emissão de acto omisso aos casos em que tal acto ou omissão viola um direito subjectivo. Reza o preceito: 

“Salvo disposição legal em contrário, a acção só é admissível se o requerente alegar ser ferido no seu direito por acto administrativo ou a sua recusa ou omissão.”

Como diz WAHL (in SCHOLL, SCHMIDT-ASSMAN, PIETZNER, Verwaltungsgerichtordnung – Kommentar, Band 1, C.H. Beck, Munique, 2003, § 42 Abs. 2, pp 2-3) aqui trata-se de uma ‘consagração da legitimidade (Klagebefugnis) do indivíduo contra o Estado.’ Vejamos agora como é que o particular poderá fazer valer essa legitimidade:

Primeiramente, tal como em Portugal, bastará a mera alegação do direito (Rechtsverletzungsbehauptung), como podemos ver pela letra do artigo, interpretação confirmada por LORENZ, que diz bastar apenas a possibilidade de violação. (v. LORENZ, Dieter, Verwaltungsprozessrecht, Springer, Berlim, 2000, pp 305-319), baseando-se a doutrina alemã na chamada Teoria da Possibilidade (Möglichkeitstheorie) segundo a qual um pedido seria inadmissível se fosse ‘óbvio que não haveria a mínima possibilidade de violação de algum direito do requerente’.
E quando é que existe um direito subjectivo a ser tutelado pela jurisdição administrativa? Diz SÉRVULO CORREIA (v. SÉRVULO CORREIRA, Direito do..., pp 113-115), que a questão se tem respondido com o recurso à teoria da norma de protecçãoSchutznormtheorie – i.e., existe um direito subjectivo sempre que o programa normativo aplicável apoia os interesses da parte de uma forma individualizada, daí decorrendo que a norma jurídica também se destina a proteger esse interesse e não apenas o interesse público. Aliás, muitas vezes o particular não pode contestar a ponderação entre os vários interesses públicos prosseguidos pela norma, visto que esta poderá não ser de protecção individual. A doutrina alemã confirma esta observação, nomeadamente WAHL (in aa.vv.,Verwaltungsgerichtordnung., § 42 Abs. 2, pp 34-35), que diz que legitimidade não depende da existência de uma norma jurídica destinada só a proteger o interesse público – norma tem de conceder um direito, uma protecção ao particular. Esta visão subjectivista terá outras consequências, nomeadamente na exiguidade da acção popular. Como relata WOLF-RÜDIGER SCHENKE, o preceito tem subjacente uma rejeição da existência de uma acção popular genérica, vista com extrema desconfiança na Alemanha na sequência do Direito Administrativo do III Reich, que admitia uma distorcida versão da acção popular. (in WOLF-RÜDIGER SCHENCKE, Verwaltungsprozessrecht, 5ª Edição, C.F. Müller, Heidelberg, 1997, pp 137-138). LORENZ concretiza, dizendo que a acção popular só é permitida em casos excepcionais, e não resulta de nenhuma cláusula geral, como a do art. 9º/2 CPTA em Portugal (v. LORENZ, Verwaltungsprozessrecht, pp 296-298).
Diz SÉRVULO CORREIA, que o subjectivismo exacerbado que marcou o período imediatamente posterior à 2ª Guerra Mundial tende hoje a ser objecto de reponderação, especialmente devido à influência do Direito da União Europeia, e com a demonstração que um certo grau de função objectiva não se revela incompatível com os ditames do Estado de Direito. Assim reitera WAHL (in aa.vv, Verwaltungsgerichtordnung, § 42 Abs. 2, p 15), que afirma a oportunidade do contencioso administrativo alemão aprender com outros sistemas, e, além disso, reitera que é imperativo fazê-lo, como resultado do processo de europeização do Direito Administrativo. 
Continuará, na sua essência, a ser um sistema contencioso reactivo, em que o Estado concede a priori ao particular certas normas de protecção - as Schutznormen - cuja mera alegação de violação concede legitimidade ao particular para defender o seu direito subjectivo.

Conclusão
Após analisar os dois sistemas, poderei afirmar que nenhum neles adopta uma visão objectivista ou subjectivista pura, consagrando múltiplas limitações e excepções. Apesar de, cada vez mais, as diferenças se esbaterem, os dois sistemas continuam a ser paradigmas de dois modos completamente diferentes de ver o acesso dos particulares à justiça administrativa. Num, o particular colabora com a Administração a verificar a legalidade de um acto que o afecte, noutro, o particular reage contra uma violação de uma norma que lhe conceda uma protecção concreta - a essência do sistema francês e objectivista, será a da colaboração entre o particular e a administração, tendente à aplicação estrita da legalidade, mas poderá significar um menor acesso à jurisdição administrativa, especialmente devido às limitações à acção popular; a essência do sistema alemão e subjectivista, será a de a reacção do particular contra a Administração quando exista uma norma que o proteja, sendo muito mais uma lógica de oposição. Contudo, a tutela dos interesses difusos é muito limitada na Alemanha, como vimos, especialmente por razões históricas. A tendência será para a aproximação, não só devido ao fenómeno de europeização do Direito Administrativo, mas também devido ao facto de haver vozes na doutrina de ambos os países, que reclamam uma adopção das soluções mais eficazes do sistema oposto. É visível também a influência de ambos os sistema no sistema português, que abandonou uma matriz francesa com a reforma do Contencioso Administrativo de 2002-2004, aproximando-se mais da matriz alemã (v., p.ex. art. 55º/1 a) CPTA), mas com alguma influência objectivista, com a admissão e densificação da chamada acção popular (art. 55º/1 f) e 9º/2 CPTA).

António Garcia Rolo - nº 19515