1.Introduzido
no nosso ordenamento jurídico-administrativo pela reforma do contencioso
administrativo de 2002/2004, o artigo 77º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos
(CPTA) consagra um meio processual de reacção contra a inércia da Administração
na adopção de normas necessárias[1]
à exequibilidade de actos legislativos.
Tal
mecanismo, trazido à discussão da reforma primeiramente por JOÃO CAUPERS[2],
e mais tarde também por PAULO OTERO[3],
foi pensado essencialmente para situações em que a lei, seguindo o princípio de
que não pode (nem deve) regular todas as situações da vida (nem todos os
elementos destas), impõe inequivocamente à Administração a tarefa de executar
as suas disposições[4]. Quando
tal execução, por via da adopção de regulamentos[5],
seja imprescindível para a exequibilidade da lei, i.e., seja necessária para que aquela lei se possa aplicar aos
casos concretos, e não tenha sido realizada dentro do prazo para a sua emissão[6],
podem os particulares recorrer ao dispositivo do artigo 77º.
Estabelece-se
desta forma, em paralelo com o dispositivo de fiscalização de
inconstitucionalidade por omissão previsto no 283º da Constituição da República
Portuguesa (CRP) e também com a acção de condenação à prática do acto devido
prevista nos artigos 66º ss. do CPTA, um meio que permite, quer ao Ministério
Público e demais pessoas e entidades defensoras de interesses referidos no 9º/2,
quer àqueles que aleguem um prejuízo directo resultante da situação de omissão,
actuar contra a inacção normativa da Administração.
2. Na
análise da declaração de ilegalidade por omissão é peremptório o debate sobre
os efeitos jurídicos da pronúncia do órgão jurisdicional. Aqui, a doutrina
tende a agrupar-se em duas orientações:
i.
Uma primeira posição opta pela valoração da decisão do tribunal como
uma sentença meramente declarativa – de simples apreciação positiva –através da
qual o tribunal poderia apenas, face a uma situação de inexequibilidade da lei
e da necessidade de emissão regulamentar, pronunciar-se pela situação de omissão
normativa da Administração. Perante tal omissão, os poderes do tribunal
limitar-se-iam à notificação do órgão administrativo competente da omissão
normativa ilegal que sobre ele pende[7].
Seria, de resto, uma valoração próxima da que sucede na declaração de
inconstitucionalidade por omissão (da qual colhe inspiração, flagrante, de
resto, pela epígrafe do artigo 77º[8]).
ii.
Numa outra perspectiva, defende-se que a sentença teria já um
valor condenatório, ou seja, imporia já à Administração a prática de uma
determinada conduta[9] – a
adopção de um regulamento –, nos termos a que está legalmente adstrita, e que o
tribunal vem reiterar. Neste entendimento (baseado essencialmente no elemento
literal do preceito: o artigo 77º/2), a decisão do tribunal terá já uma
natureza condenatória ou injuntiva, na medida em que estipula que o órgão
jurisdicional, reconhecida uma situação de omissão regulamentar, além de
informar o órgão competente, deverá também fixar um prazo casuístico (não inferior
a seis meses) para que essa omissão seja suprida. Aproximar-se-ia, assim, esta
acção, da condenação da Administração à prática do acto devido.
Apesar de o
CPTA nada referir no que concerne à execução de sentenças que declarem a
ilegalidade por omissão regulamentar da Administração, defendem alguns autores
o recurso a uma “intervenção integrativa do legislador”[10].
Assim, face a uma situação de desobediência da Administração em
relação à sentença, seria possível ao autor/beneficiário da sentença, recorrer
aos mecanismos de execução previstos para as prestações de facto infungíveis,
como sejam o estipulado no 164º/4-b), 168º e 169º, que incluem a fixação de um
prazo limite e o pagamento de uma sanção pecuniária compulsória[11].
Poder-se-ia
argumentar, contra esta última tese, estarmos perante uma violação do princípio
da separação de poderes, já que o órgão jurisdicional estaria, por via de uma
sentença, a definir os termos em que se deverá desenvolver a actividade
normativa da administração. Contra tal, entendemos que a sentença do tribunal
se deverá cingir aos limites legalmente estabelecidos para produção normativa
da administração, sob pena de violação de um princípio essencial ao nosso
Estado de Direito (artigo 2º e 111º CRP). Assim, quando a lei preveja tão-só a
existência de um dever de emissão do regulamento, concedendo um poder
discricionário à administração na determinação do seu conteúdo, o juiz deverá
limitar-se à pronúncia da existência de tal dever, sem prejuízo de indicar
também que o mesmo se deverá cumprir atendendo aos princípios que regem a
actividade administrativa. Por outro lado, quando, além da obrigação de emitir
o regulamento, a lei determine também parcial ou totalmente o conteúdo dessa
norma, pode o juiz incluir na sentença alguns termos definidores desse conteúdo,
dado que os mesmos já resultam de uma vinculação legal[12].
3. Parece-nos
que, atentos os limites a que o juiz está vinculado na sua decisão, deixando disponível
à administração a área correspondente aos seus poderes discricionários para a
adopção do regulamento em falta, pela garantia do princípio da separação de
poderes, deve admitir-se a natureza condenatória da pronúncia jurisdicional.
Não se trata apenas de conferir coercibilidade à sentença, mas antes de
garantir o cumprimento da obrigação de regulamentar, essencial à execução de
determinados preceitos legislativos, e à qual a Administração não se pode evadir.
Isabel Ferreira (19643)
[1]
Enquadramos aqui, na esteira da Ana Raquel G. Moniz, as situações em que, existindo
norma regulamentar, esta seja deficiente ou inadequada de tal modo que “equivalha
à sua ausência no que concerne à operatividade da lei” cfr. Aproximações a um conceito de “norma devida”
para efeitos do artigo 77º do CPTA, in CJA nº 87, 2011, pp. 9-10.
[2] Um Dever Regulamentar?, Cadernos de
Ciência de Legislação, nº18, 1997.
[3] “A
Impugnação de Normas no anteprojecto do Código de Processo dos Tribunais
Administrativos” in Reforma do
Contencioso Administrativo – Trabalhos Preparatórios – O Debate Universitário, Ministério
da Justiça, Lisboa, p. 141.
[4] Vide, na jurisprudência, a definição dos
pressupostos para a aplicação do 77º do CPTA: Acórdão do STA de 30 de Janeiro de 2007 (Processo 310/06), disponível
em dgsi.pt).
[5] Não nos
parece, no entanto, de excluir uma situação de inércia regulamentar de regulamentos
independentes, se da análise do ordenamento jurídico no seu todo resultar uma
imposição de emissão destes. Cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, I, p. 99 ss.; Vasco Pereira da
Silva, O Contencioso Administrativo no
divã da psicanálise, 2009, pp. 431 ss.; e ainda Ana Raquel G. Moniz, cit., p. 6-7. Contra, entendendo que
apenas regulamentos de execução e complementares podem integrar a previsão do
77º, Mário E. O. e Rodrigo Esteves de Oliveira, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2010,
p. 502.
[6] Quando o
mesmo seja legalmente determinado ou, na falta deste, num prazo razoavelmente
considerado para a actuação regulamentar da administração.
[7] Como
defendeu Paulo Otero, ob.cit., p.
141.
[8] Como
nota Mário Aroso de Almeida, Manual de
Processo Administrativo, 2012, p.111 (nota 47)
[9] Para a
delimitação da tripartição da acção declarativa, vide, Varela, Bezerra e Nora, Manual
de Processo Civil, 1985, pp. 16-22
[10]Cfr. Mário Pinto, Impugnação de Normas e Ilegalidade por omissão, 2008, p.276. No
mesmo sentido, Rui Machete, Execução de
sentenças administrativas, CJA, nº 16, p. 63.
[11] O
tribunal pode impor, logo no processo declarativo, uma sanção pecuniária
compulsória, nos termos do 44º (aplicável também à acção administrativa
especial ex vi artigo 49º), que
concretiza a regra geral do 3º/2.
[12] Cfr.,
Vasco Pereira da Silva, ob. cit., p.
433-435; Também Mário Pinto, ob. cit. p.
279.
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